Osmar.
Se a divergência não se impuser ao desrespeito, nós não teremos nunca no partido uma cultura de democracia. A impressão que tenho é que o desrespeito à divergência decorre da percepção equivocada dos autoritários de que a divergência é, em si, um desrespeito à pessoa contestada ou criticada. Ora, não se constrói uma democracia partidária fazendo concessões ao autoritarismo. O desrespeito às pessoas é a arma dos autoritários. Se nos deixamos intimidar, eles vencem, porque na prática estamos renunciando à democracia. Para que nós pensemos um pouco mais sobre essa questão, trago para vocês o trecho de um livro dum cara que eu gosto muito, que é o Norberto Bobbio. Ele diz o seguinte:
"Mas que coisa fazemos destes dissentâneos, uma vez admitido que o consenso unânime é impossível e que onde se diz que existe é um consenso organizado, manipulado, manobrado e portanto fictício, é o consenso de quem, para repetir o famoso mote de Rousseau, é obrigado a ser livre? De resto, que valor tem o consenso onde o dissenso é proibido, onde não existe opção entre consenso e dissenso, onde o consenso é obrigatório e até mesmo premiado, e onde o dissenso não apenas é proibido mas é também punido? É ainda consenso ou é pura e simples aceitação passiva do comando do mais forte? Se o consenso não é livre, que diferença existe entre o consenso e a obediência ao superior tal qual prescrita por todos os ordenamentos hierárquicos? Mas então, se não podemos aceitar o consenso unânime como uma forma mais perfeita de consenso e, portanto, devemos reconhecer que num sistema fundado sobre o consenso é impossível não existir também o dissenso, o que fazemos, repito a pergunta, dos dissentâneos? Devemos suprimi-los ou os deixamos sobreviver? E se os deixamos sobreviver, os aprisionamos ou os deixamos circular, os amordaçamos ou os deixamos falar, os expulsamos como réprobos ou os mantemos entre nós como livres cidadãos?
É inútil esconder que a prova de fogo de um regime democrático está no tipo de resposta que consegue dar a estas perguntas. Com isto não quero dizer que a democracia seja um sistema fundado não sobre o consenso mas sobre o dissenso. Quero dizer que, num regime fundado sobre o consenso não imposto de cima para baixo, uma forma qualquer de dissenso é inevitável e que apenas onde o dissenso é livre para se manifestar o consenso é real, e que apenas onde o consenso é real o sistema pode proclamar-se com justeza democrático. Por isto afirmo existir uma relação necessária entre democracia e dissenso, pois, repito, uma vez admitido que democracia significa consenso real e não fictício, a única possibilidade que temos de verificar se o consenso é real é verificando o seu contrário. Mas como poderemos verificá-lo se o impedirmos? Não pretendo abordar nessa ocasião o problema da dialética entre consenso e dissenso, e menos ainda o problema dos limites do dissenso, que existem e não podem não existir em todos os sistemas. Assim como inexiste um sistema no qual, apesar de todas as limitações impostas pela autoridade, não transpareça o dissenso, assim também inexiste um sistema no qual não existam limites ao dissenso, não obstante a proclamação da liberdade de opinião, de imprensa, etc. A realidade não conhece tipos ideais mas apenas diversas aproximações a um ou a outro tipo.
Mas existe uma diferença entre o admitir todas as formas de organização política menos a que se considera subversiva (ou seja, a que não respeita as regras do jogo) e o excluir todas as formas de organização política menos a oficial (ou seja, a que impõe não apenas as regras do jogo mas também o único modo através do qual se deve jogar). Entre uma forma extrema e a outra existem centenas de diferentes formas intermediárias. Entre o despotismo em estado puro e a democracia em estado puro existem centenas de formas diversas mais ou menos despóticas e mais ou menos democráticas. E pode inclusive acontecer que uma democracia controlada seja o início do despotismo, bem como que um despotismo atenuado seja o início de uma democracia. Mas o critério discriminante existe e é a maior ou menor quantidade de espaço reservado ao dissenso.
Creio assim ter explicado por que vinculei o problema do pluralismo ao problema do dissenso. Bem consideradas as coisas, apenas numa sociedade pluralista o dissenso é possível: mais ainda, não apenas é possível mas necessário. Tudo está portanto em conexão: refazendo o percurso em sentido contrário, a liberdade de dissentir tem necessidade de uma sociedade pluralista, uma sociedade pluralista consente uma maior distribuição do poder, uma maior distribuição do poder abre as portas para a democratização da sociedade civil e, enfim, a democratização da sociedade civil alarga e integra a democracia política. Creio assim ter indicado, embora com as imprecisões e insuficiências de que estou perfeitamente consciente, a estrada capaz de conduzir ao alargamento da democracia sem desembocar necessariamente na democracia direta. Pessoalmente, estou convencido de que a estrada é justa, embora repleta de perigos. Porém, estou também convencido de que a atitude do bom democrático é a de não se iludir sobre o melhor e a de não se resignar com o pior."
(Trecho do livro “O Futuro da Democracia”, de Norberto Bobbio, capítulo “Democracia representativa e democracia direta")
Abraços a você, Osmar, e aos demais companheiros.
Silvio Melgarejo.
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