segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Greve no setor público é a vitória do corporativismo sobre a consciência de classe.

Por Silvio Melgarejo - Nadando contra a corrente, dentro da esquerda, defendo o seguinte ponto de vista:

Greve no setor público é trabalhador pisando em trabalhador. É a vitória do corporativismo sobre a consciência de classe.

“Na briga entre o mar e o rochedo, quem sofre é o marisco”. O ditado é velho, desconheço sua origem, mas ilustra bem a situação vivida hoje pelos alunos das redes municipal e estadual de ensino do Rio de Janeiro. Coitados. Deram o azar de nascer mariscos. Outro ditado, também muito conhecido vem bem a calhar: “não há nada tão ruim que não possa piorar”. Esse, então, é perfeito para descrever os serviços públicos em tempos de greve. Se os estudantes são os mariscos, Estado e professores são rochedo e mar, empenhados na própria luta e indiferentes à sua sorte.

Quando é que os servidores públicos vão entender que hospital e escola pública não são fábricas capitalistas? Quando é que vão entender que a greve numa escola ou hospital tem implicações muito diferentes das existentes nas greves fabris? Quando é que vão tomar consciência de que, enquanto o poder de barganha da greve operária está no prejuízo causado apenas ao burguês, o poder de barganha das greves que fazem alimenta-se unicamente do sofrimento e do prejuízo causado aos usuários dos serviços públicos, que são exatamente os trabalhadores mais pobres da sociedade? Quando é que os servidores públicos vão entender que isso é uma covardia e uma injustiça enorme que, com razão, não lhes perdoam os seus irmãos de classe?

Em 2007 conversei sobre isso com alguns professores grevistas de São Paulo através do Orkut. Na época, discutia-se uma proposta de regulamentação do direito de greve dos servidores, enquanto multiplicavam-se, no Rio, as vítimas de balas perdidas na guerra da polícia contra o tráfico. Invariavelmente, trabalhadores pobres é que morriam. Foi inevitável pensar, então, que na guerra salarial dos servidores contra os governos, a vítima é também aquele mesmo trabalhador pobre, que não tem plano de saúde, nem condições de pagar uma escola particular para os filhos. Os servidores lutam “bravamente”. Mas quem entra, à revelia, com o sacrifício é o usuário dos serviços públicos. Disse àqueles companheiros que era solidário à sua causa, mas que desaprovava o seu método de luta, explicando porque e apresentando alternativas. Num momento em que vejo tanta gente solidária com a greve dos professores cariocas, que já dura mais de 40 dias na rede municipal, e mais de 2 meses na rede estadual de ensino, ponho-me no lugar do pai de um aluno sem aula e imagino que ele deva pensar: "Odeio Cabral e Paes. Mas odeio igualmente os professores grevistas".

A greve no setor público gera um conflito de interesses entre usuários e servidores, que divide inevitavelmente a classe trabalhadora e impede que ela avance objetivamente para a solução dos problemas existentes em áreas essenciais como a saúde e a educação. Isso não precisaria ocorrer, porque a greve não é a única forma de luta capaz de pressionar os governos ao atendimento das demandas dos servidores. O uso recorrente da greve nos serviços públicos e a naturalização de suas infelizes consequências, revela o predomínio absoluto do corporativismo sobre a consciência de classe no sindicalismo brasileiro. Esse é um problema que deveria preocupar muito a esquerda brasileira, mas aparentemente não preocupa. E por uma razão muito simples. Os trabalhadores organizados em sindicatos estão muito mais presentes nas máquinas partidárias e nos parlamentos do que os não sindicalizados. De tal modo que os partidos de esquerda acabam sendo contaminados pelo corporativismo dos sindicatos em que estão presentes.

O sindicalismo, de fato, une os membros de uma categoria, mas tende a dividir a classe. E classe dividida, é classe politicamente fraca. Todos perdem com isso. A única maneira de combater o corporativismo e reforçar a consciência de classe nos partidos de esquerda e na sociedade é investir no fortalecimento das associações de moradores e na criação de associações de usuários de serviços públicos. Só nesse tipo de entidade, trabalhadores de diferentes categorias profissionais teriam a oportunidade de, juntos e misturados, atuarem efetivamente como classe social. O dia em que a questão salarial dos servidores públicos for discutida pelo conjunto da classe trabalhadora, como parte integrante de sua luta por mais e melhores serviços públicos para todos, a greve nos serviços públicos vai ser abolida definitivamente, por decisão livre, democrática e soberana dos próprios trabalhadores.

A luta unificada da classe em torno de uma pauta comum sobre os serviços públicos, que abrangesse as demandas dos servidores, seria um caminho alternativo à destrutiva e ineficiente fórmula tradicionalmente adotada pelos sindicatos de servidores em campanhas salariais. Mas, quem afinal admite sequer pensar em alternativas às greves, quando acha perfeitamente legítimo atropelar o direito dos outros para defender o próprio direito? A ética capitalista da disputa e da concorrência, do “cada um por si”, do “farinha pouca, meu pirão primeiro”, do “morreu? antes ele do que eu”, move os trabalhadores tanto quanto aos seus patrões, nessa selva maluca que é a nossa sociedade. Os servidores clamam por justiça pisando no pescoço dos usuários dos serviços públicos. Sindicalistas de discurso socialista pedem a solidariedade dos que estão com o pescoço sob suas botas. Exalta-se o heroísmo e a combatividade dos grevistas, como se eles não impusessem ao conjunto da classe o ônus total da luta de sua categoria. A causa dos professores do Rio é justa. Mas eles estão realmente sendo egoístas e tremendamente injustos com os seus alunos, filhos dos trabalhadores mais pobres da nossa sociedade. Não seria necessário impor-lhes tanto sacrifício, porque há, sim, formas mais eficientes e menos socialmente danosas de pressionar governos do que a greve.

Convido os servidores, especialmente professores, que estão presentemente em greve, a refletirem um pouco sobre as ponderações que respeitosamente faço. Contem comigo para lutar ao lado de vocês, mas não para apoiar as suas greves, porque elas só prejudicam outros trabalhadores mais pobres do que vocês. Os filhos de Cabral e Paes não estudam em escola pública.

Texto publicado em minha página no Facebook


DEBATE NO FACEBOOK

Glória Melgarejo disse - Faltou apontar quais são "as formas mais eficientes e menos socialmente danosas de pressionar governos do que a greve". Muito fácil dizer que há alternativas, mas não indicar quais. Negociar com os atuais governos estadual e municipal, por exemplo, não é possível. Com eles, não há diálogo. Eles nunca aceitam sentar à mesa para debater os problemas. Como pressionar então?

Amália Araújo disse - Além de não mencionar as alternativas como Gloria Melgarejo citou acima... gostaria de lembrar que prejudicados esses alunos já estão e faz muito tempo, numa escola que aprova automaticamente; numa máquina de fazer avaliações que só geram mais verbas federais para estados e municípios e não repassam para escolas e professores; escolas que na sua maioria não possuem condições mínimas para funcionar; falta de autonomia dos educadores para lecionar e educadores massacrados e insatisfeitos. Se a questão fosse só salarial, certamente esta greve já teria acabado. No Rio de Janeiro, além de todos estes pontos nos deparamos com um PCCR que aniquila a carreira dos funcionários, onde um professor recém concursado recebe mais e pode mudar mais de nível que um profissional de mais de 20 anos, onde agora, com o PEF, que na verdade é um professor polivalente, podemos ter professores de educação física alfabetizando, professor de português dando aula de matemática e assim por diante. Certamente, se não continuarmos na greve, esse aluno só perderá mais ainda. Nessa corrida pela privatização do ensino público, só quem perde são eles. E por último, o ponto mais importante, intransigente não é o grupo de educadores e sim o governo que a força enfia suas vontades ditadoras goela abaixo de toda a sociedade.

MEU COMENTÁRIO - É mais fácil ainda dizer que não há alternativa senão a greve e jogar todo o ônus da paralisação sobre os ombros das crianças pobres. Fazer greve com estabilidade no emprego e sem desconto dos dias parados é mole. Difícil é fazer greve em empresa privada, onde não tem nada disso. 

O que eu disse no meu texto:
“A luta unificada da classe em torno de uma pauta comum sobre os serviços públicos, que abrangesse as demandas dos servidores, seria um caminho alternativo”.
Qualquer forma de luta decidida e implementada em comum acordo por servidores e usuários dos serviços públicos, é milhões de vezes mais eficiente do que uma greve. Só não entende isso quem ainda não percebeu que escola e hospital não são fábricas. 

Vamos pensar juntos?

Por que o burguês cede à reivindicação do operário ante uma greve? Porque a greve não lhe convém. E por que não lhe convém? Porque lhe dá prejuízo. Prejuízo de que natureza? Prejuízo financeiro. 

Agora por que o governo cede à reivindicação do servidor ante uma greve? Porque também ao governo a greve não convém. E por que não convém? Porque lhe dá prejuízo. Prejuízo de que natureza? Prejuízo político.

Existe, portanto, uma diferença fundamental entre a greve na fábrica capitalista e a greve nos serviços públicos. A greve na fábrica tem como alvo a fonte do capital financeiro do burguês que é o lucro advindo da venda da produção. Se não há produção, não há venda, e se não há venda não há lucro. Já a greve nos serviços públicos tem como alvo a fonte do capital político do governante, que é a aprovação social conquistada pela quantidade e pela qualidade da oferta de serviços públicos. Se não há serviços públicos, não há aprovação do cidadão-eleitor ao governante.

A greve operária é uma ação que se dá no contexto de um conflito entre duas partes - trabalhador e patrão - que não objetiva atingir uma terceira, que seria a clientela da empresa.

Já a greve no serviço público é também uma ação desenvolvida no contexto de um conflito entre duas partes - servidor e governo. Mas nesse caso uma terceira parte - o usuário - é trazida à força, como refém, para o centro da disputa. Aqui, o objetivo da ação grevista é impor deliberadamente sofrimento e prejuízo ao usuário, na expectativa de que o usuário compreenda o servidor, que lhe afunda a faca no pescoço, e responsabilize o governo pelo seu drama. 

Nunca vi usuário de serviço público parado com Síndrome de Estocolmo. Muito pelo contrário. Todo cidadão odeia quem sequestra seus direitos. Por isso, quando há uma greve nos serviços públicos, a responsabilidade pelos transtornos é dividida pelo usuário, entre governo e servidores, com uma dose maior de condenação aos servidores pela traição de classe e pelo fato de provocarem deliberadamente o agravamento de uma situação que já lhes é permanentemente desfavorável. Cidadão que depende mesmo dos serviços públicos não apoia greve de servidores. 

Se os professores, por exemplo, usassem a força de sua organização e o poder de seus aparatos sindicais para promover atividades diárias de esclarecimento e protesto, dentro e fora das escolas, envolvendo alunos, pais, comunidades, entidades, imprensa e partidos políticos, para expressar o propósito de lutar por melhores salários sem recorrer à greve, para respeitar e preservar o direito sagrado das crianças e adolescentes ao ensino; se fizessem isso de maneira sincera e apaixonada, pondo o amor pela educação acima da necessidade de um melhor salário, os professores ganhariam com certeza a inteira simpatia, o respeito e o apoio de todos os demais trabalhadores, enquanto os governos sofreriam sozinhos o desgaste de suas imagens, caso adotassem atitude intransigente. Uma mobilização como esta, além disso conduzida dessa forma pelos professores, envolvendo tanta gente na sociedade, seria uma inesquecível lição de amor e cidadania para todos os que tivessem o privilégio de testemunhar ou participar desses eventos. Porque educar não é só ensinar letras, números, fórmulas e conceitos. Educar é, sobretudo, formar cidadãos solidários.

Não são muitas as formas de luta social convencionais. Além da greve, que afeta a produção, e do boicote, que afeta o comércio, há o comício, a passeata e a vigília (acampamento ou ocupação), que servem ao mesmo tempo para mostrar a governos e parlamentos o volume e a intensidade da adesão social a uma causa, e dar publicidade aos seus princípios e objetivos para ampliar ainda mais o seu número de adeptos. No caso dos servidores, cujo objetivo deve ser o desgaste da imagem do governante e a conquista da simpatia da sociedade, as formas mais efetivas de luta são as de natureza propagandística e de demonstração pública de adesão social.

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