Em primeiro lugar, a de que trata-se de um movimento de
caráter nacional, pacífico e apartidário, composto majoritariamente por jovens
de classe media e caracterizado pela ausência de pauta e direção unificadas,
mesmo em suas expressões locais.
A segunda observação que pode ser feita é sobre a evolução do
movimento. E é aí que, talvez, se possa explicar a proporção que ele tomou. As
manifestações começam como expressão de uma demanda local contra o aumento das
tarifas de ônibus, em São Paulo, e se expandem para todo o país, depois da
violenta repressão policial, numa onda nacional e incontrolável de solidariedade
aos manifestantes paulistas.
A liberdade de expressão e o direito cidadão de protestar em
via pública foram alvos de bombas e tiros de balas de borracha, produzindo
imagens que chocaram e revoltaram, pela brutalidade e pela gratuidade dos
ataques. Aos olhos da juventude brasileira, a democracia, em São Paulo, sofrera
uma grave e covarde agressão. Era preciso reagir para defendê-la. E a reação
não tardou. Veio, com a força de todas as revoltas represadas, à feição de um
tsunami súbito e devastador, para afrontar polícias violentas e ocupar e
garantir o espaço da cidadania.
Foi a violência do Estado, portanto, a meu ver, o fermento das
manifestações desse conturbado junho. A polícia bateu e a massa cresceu, porque
os ingredientes do bolo da insatisfação, em verdade, também já estavam lá, não
poderiam deixar de estar. Porque, se muito foi feito, e muito se avançou na última
década, muito ainda resta a fazer, ninguém o nega. O impulso inicial de
solidariedade às vítimas da repressão, acabou dando vazão à expressão de um conjunto
de anseios populares que as instituições tradicionais da política não tiveram
sensibilidade para escutar, entender e atender. Rompendo a inércia de décadas
de paralisia, a juventude se mobilizou, tomou as ruas e se fez notar.
Na segunda, 17 de junho, o país ouviu um coro gigantesco de
vozes que, certamente, não gritavam e cantavam em uníssono. Mas o feixe de
notas entoadas resultava, indiscutivelmente, num acorde, cuja fundamental era a
antiga e bem conhecida demanda por mais e melhores serviços públicos, uma
demanda nunca antes expressada com tamanha intensidade. O que se viu foi, acima
de tudo, um ato de desobediência civil frente a um Estado autoritário, que
ainda não se adaptou completamente à democracia. Ou, como alguém já disse, um vigoroso
protesto pelo direito de protestar.
A questão de fundo, colocada pelos protestos, portanto, não
é a pauta, em si, dos problemas mencionados nas palavras de ordem, e sim a
demanda não declarada por mais democracia, num contexto de crise de
representatividade das instituições políticas. O alto grau de desconfiança e
rejeição a todos os partidos decorre da percepção, alimentada pela mídia, de
que são todos máfias que, ou se locupletam para saquear o erário, ou disputam
cargos na administração pública com este mesmo fim.
Sem reconhecer representantes confiáveis no interior das
instituições do Estado, a classe media jovem invadiu as ruas e praças para dali
dirigir sua mensagem diretamente aos governos e parlamentos de todo o país. Quer
transporte, saúde, educação e segurança gratuitos e de qualidade, para todos os
brasileiros. A novidade não é essa pauta, nem a forma como ela tem sido
vocalizada, mas o meio pelo qual as manifestações foram convocadas – pela
internet – e a ausência de uma organização capaz de dar direção e consequência
ao movimento.
O pequeno e frágil MPL (Movimento Passe Livre) foi engolido
pelo gigantismo das ações desencadeadas, ações cuja condução passou a ser
disputada pela direita, com sua conhecida pauta da criminalização do PT e do
impeachment de Dilma. O MPL, manteve-se fiel à sua pauta original, mas não pode
evitar que ela fosse diluída na pauta difusa das ruas, reforçada pela poderosa
mídia golpista.
A força das recentes mobilizações não se traduzirá em
conquistas maiores do que a revogação do aumento das tarifas de transportes,
simplesmente porque esta foi a única reivindicação objetiva apresentada aos
governos, a única que tinha interlocutores para negociar com as autoridades, a
única que tinha possibilidade de obter uma resposta imediata. Tudo mais foi
desabafo coletivo, protesto sem proposta concreta, negação de tudo e
demonstração de força para a afirmação de nada.
Sem direcionamento, a energia da revolta, por maior que
seja, se dissipa, se esgota, e não produz resultados compatíveis com o seu potencial
transformador. As passagens baixaram. Mas aquela multidão poderia e ainda pode
obter muito mais. Há nas ruas um exército disposto a lutar. O problema é que
ainda está sem comando.
A rebelião da juventude sacudiu o país e deixou já uma lição
para todos. Se não houver unidade de ação das esquerdas no movimento de massas,
a direita ocupa o espaço, impõe a sua pauta e assume a direção. O PT sabe disso
e o PCO emitiu nota ontem expressando esse mesmo entendimento. Espera-se que
PSOL e PSTU vençam o sectarismo e colaborem na construção de uma direção
unificada das esquerdas para a condução das grandes mobilizações deste que
aparenta ser o início de um novo período de ascenso do movimento de massas do
país.
Quero terminar dizendo algumas palavras sobre o MPL. A luta
contra o aumento das passagens projetou nacionalmente o Movimento Passe Livre,
sua causa e suas lideranças. Politicamente, são eles os maiores vitoriosos
dessa empreitada. Não só pela conquista da revogação dos aumentos das passagens,
mas, sobretudo, por terem conseguido elevar os temas do transporte público e da
mobilidade urbana, aos quais a anos se dedicam, para o topo da pauta da
cidadania – ao lado de saúde, educação e segurança –, bem como pela enorme
publicidade dada à sua luta pelo transporte público gratuito. A “tarifa zero”
entrou definitivamente na pauta do debate público. Essa foi a grande vitória
dos meninos.
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