terça-feira, 25 de janeiro de 2022

O PT e a governabilidade segundo Maquiavel


Lições de Maquiavel

Diz Maquiavel em sua obra clássica "O príncipe": 

“As tropas com que um príncipe defende o seu estado são ou próprias ou mercenárias ou auxiliares ou, ainda, mistas. As mercenárias e auxiliares são inúteis e perigosas. Se alguém toma por sustentáculo as tropas mercenárias, nunca terá tranquilidade nem segurança, porque elas são desunidas, ambiciosas, sem disciplina, infiéis, corajosas diante dos amigos, covardes diante dos inimigos, e sem temor de Deus. Com semelhantes tropas, um príncipe só poderá evitar a própria ruína enquanto puder evitar um ataque contra si. Será pilhado por elas em tempo de paz, e pelo inimigo em tempo de guerra. A causa disso é que tais tropas não têm outro sentimento nem outro motivo que as faça lutar a não ser um pequeno estipêndio, e este não basta para lhes incutir a vontade de morrer por quem lho paga. Querem ser soldados do seu patrão quando ele não faz a guerra; mas, ao romper esta, querem fugir ou desligar-se do seu compromisso.

(...)

As tropas auxiliares, o outro tipo de armas inúteis, são as que um príncipe pede emprestadas a outro poderoso para o virem ajudar e defender. (...)  Semelhantes tropas podem ser úteis e boas para os seus chefes, mas são sempre perniciosas para quem as chama, porque, se forem derrotadas, ele também o será, e se vitoriosas, tê-lo-ão à sua mercê. (...)  Por conseguinte, só quem não quer vencer pode pensar em servir-se de tais tropas, muito mais perigosas do que as mercenárias. É que, pelo fato de estarem unidas e de obedecerem a outrem, elas nos trazem inevitavelmente a ruína. Já as mercenárias, não constituindo um corpo só e tendo sido, além disso, procuradas e pagas por quem as emprega, precisam, após a vitória, de mais tempo e oportunidade para se volverem contra ele; e o próprio chefe que, por incumbência do príncipe, as comanda, não pode adquirir logo autoridade suficiente para o prejudicar. Em suma, nas tropas mercenárias o mais perigoso é a covardia, nas auxiliares o valor [virtú][[a lealdade ao seu senhor]]. Todos os príncipes ajuizados sempre evitaram tropas desta espécie, recorrendo às próprias e preferindo perder com estas a vencer com as alheias. Nunca se lhes afigurou verdadeiro triunfo o conquistado com as armas de outrem. (...)  A realidade é que as armas alheias ou nos caem das mãos ou pesam sobre os nossos ombros ou nos apertam.

(...)

Do exposto concluo que, sem possuir exércitos próprios, nenhum principado está seguro e, ao contrário, fica dependente do destino, por não ter quem o defenda na adversidade. Recordemos aqui que a opinião e sentença dos homens atilados sempre foi “que nada há tão débil e instável como a fama do poder que não assenta em força própria” ["quod nihil sit tam infirmum aut instable, quam fama potentiae nun sua vi nixa", Tácito, Anais XIII, 19]. As armas próprias são as formadas ou por súditos ou por servidores do príncipe. Todas as outras são mercenárias ou auxiliares."

O PT e suas forças próprias, auxiliares e mercenárias

A forças próprias do Partido dos Trabalhadores são aquelas de onde ele surgiu e de onde vem cada vez mais se distanciando: os trabalhadores organizados em suas entidades e intervindo no processo político através das suas variadas formas de luta e manifestação. A burguesia sempre fez um enorme esforço para convencer a classe trabalhadora de que as eleições eram o único espaço legítimo para o exercício da sua cidadania. Pois, nós, do PT, nascidos da contestação a essa mentira, acabamos por engoli-la e, com nossa nova atitude, fazemos coro com a burguesia induzindo o povo a manter-se dócil e passivo na condição de mero espectador da democracia falsa que a burguesia comanda.

A opção por uma atuação exclusivamente institucional é a causa maior dos maiores problemas do Partido dos Trabalhadores. A aliança com os movimentos sociais foi abandonada em detrimento da aliança com partidos burgueses, de direita, corruptos e fisiológicos, que são as tais forças mercenárias e auxiliares de que fala Maquiavel em O Príncipe. Pois se rompemos com os movimentos sociais, que são nossas forças próprias e entramos no jogo da política institucional inteiramente desarmados, acabamos reféns de uma situação em que, se não compramos o apoio da bandidagem ou fazemos acordo com partidos inimigos, ficamos impossibilitados de vencer eleições, menos ainda, de governar. É assim que aparecem as alianças esdrúxulas, os escândalos de corrupção e essa imensa confusão ideológica e crise de identidade por que estamos passando.

O PT abre mão de investir nas mobilizações populares de onde poderia e deveria retirar a energia transformadora capaz de impulsionar o seu projeto e, ao invés disso, alia-se a forças políticas que, historicamente, sempre se opuseram a esse projeto que ele defende, um projeto que é a razão de ser da sua existência, e com isso confunde o povo e a sua própria militância, que não conseguem mais entender quem é quem. Daí o quadro de evidente despolitização dentro do partido e na classe trabalhadora, que faz com que, ao invés de ideias, se discutam nomes de pessoas e partidos para as eleições, sem nenhuma clareza do que realmente representam. Porque, afinal, tudo acaba, mesmo, parecendo a mesma coisa.

Vitória eleitoral e vitória política

Vitórias eleitorais nem sempre são vitórias políticas. Quando, para vencer uma eleição e governar sem sobressaltos, um partido abre mão do seu projeto original e passa a usar métodos que antes repudiava, o que se tem não é avanço, é retrocesso. Vitória política é avançar na realização de um programa de governo apoiando-se em forças próprias, sem fazer concessões que desfigurem esse programa e a ética original do partido, admitindo o emprego de expedientes antes considerados escusos, desses a que estão habituados os partidos tradicionais da burguesia.

A direita e a burguesia terão sempre razão para comemorar toda vez que o PT admitir dividir com elas palanques e governos. Tudo o que elas querem é a diluição da imagem pública do partido de esquerda dos trabalhadores, que quer transformações na sociedade, na água suja e fétida em que se banham os partidos conservadores. Desaparecendo o marco divisório entre as ideologias e as classes no plano da representação política, tudo fica igual, todos são iguais, ninguém é de direita, ninguém é de esquerda, tudo é centro, “todos os gatos são pardos”. 

O PT erra ao permitir, com sua conduta, que os trabalhadores o vejam como apenas uma carta a mais no baralho da democracia burguesa. A confusão que isso gera beneficia aos conservadores porque desarma politicamente a classe trabalhadora frente à burguesia. A maior parte da militância petista ainda não está se dando conta desse equívoco gravíssimo das suas direções e segue encantada por essa limitada democracia sem povo na rua, que se estabeleceu no país, como se a simples eleição de bons representantes fosse capaz de garantir as mudanças que deseja. 

Estamos nos iludindo e iludindo ao povo brasileiro. Porque é preciso muito mais do que bons parlamentares e bons governantes para transformar esse país e torná-lo uma nação realmente soberana, próspera, democrática e socialmente justa. Só o poder popular pode fazer essa transformação e o poder popular não se constrói nos gabinetes dos parlamentos e governos, só se constrói nas ruas.

Ignorando essa lição da História, a maioria dos petistas entrega-se com sofreguidão às eleições, fazendo delas o evento único para o exercício da cidadania, como querem, sempre quiseram, os ricaços da burguesia. A maioria de nós, petistas, confunde vitória eleitoral com vitória política. Não percebe que, dependendo do preço que o PT tenha que pagar à direita e à burguesia, em termos de concessões éticas e programáticas, qualquer vitória eleitoral pode representar, na realidade, uma derrota política. Isto sem falar no risco enorme de traição e golpes de Estado que essas alianças sempre acarretam. 

Forças políticas próprias dos governos de esquerda são apenas as organizações populares de esquerda - partidos e movimentos sociais -, por isso são elas as únicas forças políticas realmente confiáveis para darem sustentação aos governos da esquerda. Organizações de direita, todas elas, por mais que se prontifiquem a colaborar e prometam lealdade, jamais serão confiáveis, por representarem interesses incompatíveis com os interesses que a esquerda representa, por isso alianças com elas devem ser evitadas. Não é possível governar para o povo governando com os inimigos do povo. Só é possível governar para o povo governando com o povo. É isso que precisa ser entendido pelos dirigentes e pela militância do Partido dos Trabalhadores.

Silvio Melgarejo

Julho/2008

(Texto que postei no Orkut em julho de 2008, com o título "Lições de Maquiavel". Revisado e publicado neste blog em 12/08/2016 e em 25/01/2021)

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