Governabilidade é o conjunto de condições que permite a um presidente realizar o seu programa de governo. A maioria das pessoas acredita que essas condições só podem existir quando o presidente tem o apoio da maioria do parlamento e que se a esquerda é minoria então ela tem que necessariamente fazer aliança com setores da direita. O problema é que nenhum dos defensores dessa tese se pergunta: qual o custo de uma aliança com a direita e até que ponto uma aliança com a direita é confiável? Em troca de que um partido ou parlamentar de direita irá apoiar um governo realmente de esquerda, sacrificando as suas convicções e a relação vantajosa que tem com os ricos?
Concordo que a governabilidade de um presidente de esquerda pode ser muito favorecida por uma maioria parlamentar só de esquerda. Mas discordo que um presidente de esquerda possa ter governabilidade garantida por uma maioria parlamentar mista, de esquerda e direita. Uma maioria parlamentar assim estará sempre sujeita a infidelidades e defecções, podendo tornar-se rápida e inesperadamente minoria e deixar o governo de esquerda completamente vulnerável, fragilizado ante uma oposição de direita golpista empenhada em desestabilizá-lo, inviabilizá-lo e derrubá-lo.
Mas insistem os defensores da aliança da esquerda com setores da direita que esse acordo é necessário para ampliar a base parlamentar do governo de esquerda. Dizem que, quando a coligação "só com iguais" não permite que um partido de esquerda forme base suficientemente ampla para sustentar o seu governo, aí é preciso fazer coligação "com os diferentes", com partidos de direita. Ouvi isso recentemente de um companheiro, a quem expliquei o meu ponto de vista da seguinte forma: "’Coligação com iguais’ significa ‘coligação com quem tem os mesmos objetivos para o governo’. ‘Coligação com diferentes’ significa o oposto disso, significa ‘coligação com quem tem objetivos diferentes, até mesmo opostos, para o governo’. Como é que isso pode dar certo? Não te parece óbvio que num governo com uma composição assim, a atuação da direita, com seus objetivos, tende a enfraquecer ou até neutralizar completamente a atuação da esquerda, impedido que a esquerda alcance os seus próprios objetivos?”. Ele acabou concordando.
A conclusão do que até aqui tenho dito é que não basta a base parlamentar de um presidente de esquerda ser majoritária para ele ter condições de implementar o seu programa de governo de forma segura, sem o risco de ser derrubado antes do fim do seu mandato. É preciso que, além de majoritária, essa base também seja muito sólida, para que não se quebre ou desmanche ao longo do tempo ou de uma hora para outra. Ora, uma base parlamentar só será sólida se for composta apenas por parlamentares que realmente concordem com as diretrizes fundamentais do programa de governo do presidente. Se o programa é antineoliberal, a base parlamentar tem que ser antineoliberal, senão a qualquer momento e por qualquer pretexto essa base pode deixar o presidente na mão e até voltar-se contra ele, passando para a oposição.
Quer dizer que ter uma base parlamentar majoritária e sólida é o suficiente para se garantir governabilidade a um presidente de esquerda? A resposta é não. Uma base assim pode até ajudar, mas não garante a sustentação de um presidente de esquerda. Isto porque a direita, em nome dos ricos, continua a comandar os tribunais de justiça, as forças armadas e os grandes meios de comunicação do país, que lhe dão um enorme poder de coerção sobre a sociedade e de manipulação da opinião pública. Com todo esse poder de manipulação e coerção, a direita tem todas as condições para fabricar crises artificialmente a toda hora, jogar o povo contra o parlamento e o presidente, desestabilizar o governo e por fim derrubá-lo.
Mas, então, qual a receita para a governabilidade de um presidente de esquerda? Eu não tenho a menor dúvida de que a única coisa capaz de sustentar um governo que seja realmente de esquerda é o apoio do povo. Para um presidente de esquerda, comprometido com um programa de esquerda, a governabilidade só pode ser garantida por uma ampla e combativa base social, formada por todos os que o apoiam na sociedade. Chama-se a isso de governabilidade social. E a governabilidade social só pode ser conquistada por um presidente quando ele consegue, em primeiro lugar, satisfazer rapidamente às necessidades mais urgentes do povo e, em segundo lugar, dar ao povo razões para acreditar que o governo está realmente disposto a fazer o que for preciso para continuar melhorando a sua vida. Isso significa que o presidente de esquerda deve disputar a opinião pública com a oposição de direita permanentemente, desde o primeiro dia do seu mandato até o último.
Na governabilidade social pode-se dizer que o presidente de esquerda se sustenta com forças próprias, as da classe trabalhadora, que são as únicas forças realmente confiáveis, por terem real interesse na implementação do programa da esquerda, e não com forças mercenárias ou auxiliares, como os partidos de direita, que não merecem a menor confiança, por serem servidoras dos ricos, e que mesmo assim são preferidas pelos defensores da governabilidade parlamentar.
O desprezo pela governabilidade social - que realmente existe na esquerda - decorre do desejo imenso de certas lideranças de manterem a participação política do povo restrita às eleições ou da crença dessas mesmas lideranças na incapacidade do povo de ter outra participação política além do voto nas urnas. Os defensores da governabilidade parlamentar parecem ter tanto medo de povo na rua que preferem fazer acordos com inimigos, gente que tem objetivos opostos aos seus e de quem já sofreu os ataques mais vis. Confiam na palavra de quem os odeia e odeia ao povo na vã esperança de que desta feita serão leais, quando esses falsos aliados que procuram nunca foram leais, sempre os traíram e agrediram ao povo da forma mais covarde e impiedosa.
Eu estou convencido de que a base parlamentar de um presidente de esquerda não precisa ser obrigatoriamente ampla, muito menos majoritária. Mas é fundamental que essa base parlamentar seja bastante sólida e muitíssimo combativa, para disputar com disciplina e vigor a opinião pública com a direita e liderar com o presidente a mobilização social em favor da sua gestão. O presidente e sua base parlamentar devem estimular permanentemente os trabalhadores a exercerem nas ruas a necessária e legítima pressão cidadã sobre as demais instituições do Estado, para que essas instituições respeitem o mandato do presidente eleito e para que elas colaborem com a realização do seu programa de governo.
A mobilização social permanente é indispensável para a sustentação de um governo de esquerda. Por isso é fundamental que essa mobilização seja impulsionada e mantida pelo próprio governo e sua base parlamentar, através do debate público com a oposição, procurando sempre mostrar os interesses por trás dos discursos e procurando sempre deixar claro para o povo quem é quem na disputa política, quem é aliado e quem é inimigo, quem merece a confiança do povo e de quem o povo deve desconfiar. O segredo da governabilidade social, única realmente capaz de sustentar um governo de esquerda, é atender às necessidades do povo mas sobretudo evitar que o povo seja enganado por seus inimigos.
Depois da eleição deste ano, a polarização das últimas três décadas continua. De um lado, Lula precisa romper com o neoliberalismo para corresponder às expectativas do povo sobre o seu governo. De outro lado, a centro-direita, a mando dos ricos, vai tentar impedir a qualquer custo que ele rompa com o neoliberalismo. Isso significa que os ricos e a centro-direita vão conspirar contra o governo Lula, vão tentar sabotar o governo Lula e vão tentar novos golpes de Estado contra o governo Lula. Como poderá Lula governar para o povo sob tanta pressão, com forças tão poderosas a tentar subjugá-lo e forçá-lo a trair o povo, dando continuidade ao programa neoliberal que tem provocado a ruína do país? Como garantir a governabilidade no próximo mandato de Lula?
A gravidade da crise que o país enfrenta hoje e a crescente impaciência do povo, que sofre os efeitos dessa crise na carne, exigirá do futuro governo Lula medidas de forte e imediato impacto positivo na vida material das pessoas. E toda oposição que haja a essas medidas destinadas a proporcionar ao povo uma vida melhor deve ser fortemente denunciada pelo governo, para que o povo saiba quem são os seus inimigos e possa precaver-se contra eles, rechaçando os seus ataques ao governo. Esta é a primeira condição para que o próximo governo Lula tenha governabilidade: que ele conquiste e mantenha uma base social bastante ampla.
A outra condição é que ele estimule constantemente essa sua base social, para que ela se mantenha ativa nas ruas e nas redes sociais da internet. É preciso lembrar que vamos reconquistar o comando do poder executivo, mas os ricos e a direita ainda manterão o comando do legislativo e do judiciário, das forças armadas e dos grandes meios de comunicação. A única possibilidade de Lula não ser subjugado por todos esses inimigos do povo e conseguir resistir às pressões, mantendo-se fiel aos compromissos assumidos com o povo, sem desviar-se da rota necessária para ter sempre o povo ao seu lado, é comunicar-se sistematicamente com o povo, denunciando os seus inimigos e mobilizando o povo para que o povo deixe de ser apenas espectador e passe a ser o maior protagonista da luta política por seus direitos. Porque só é possível governar para o povo governando com o povo. Isto é que precisa ser entendido por todo militante de esquerda.
Portanto, resumindo, a governabilidade de um presidente de esquerda só pode ser garantida quando ele tem uma sólida e combativa base parlamentar de esquerda e ao mesmo tempo um amplo e combativo apoio na sociedade. Presidente de esquerda só se sustenta assim, com luta, com povo na rua dando-lhe apoio, qualquer outra fórmula que inventem não tem como dar segurança ao seu mandato e proporcionar condições para a implementação do seu programa de governo. O governo de esquerda torna-se vulnerável sempre que deixa de chamar as vítimas do capitalismo a lutarem contra os seus algozes e contra o sistema que as submete às maiores privações e sofrimentos. Enquanto a esquerda insistir em restringir a luta de classes ao âmbito das instituições do Estado comandado pelos ricos, ela vai continuar sendo derrotada, senão por fraudes eleitorais, por campanhas midiáticas ou golpes de Estado. Que Lula presidente e seu partido, o PT, não cometam mais uma vez esse erro, que a história recente já lhes mostrou ser fatal.
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