Como pode alguém como Alckmin, que não se arrepende de ter apoiado um golpe de Estado, ser reconhecido por gente da esquerda como democrata e como digno de confiança para ser vice do Lula?
ALCKMIN NÃO É ALENCAR (I)
A História desautoriza enfaticamente a identificação de Geraldo Alckmin com José Alencar, que se tem feito equivocadamente para justificar uma aliança absurda que traria enormes riscos para o futuro governo da esquerda. Alckmin, como governador de São Paulo, foi um dos principais líderes das articulações políticas que levaram ao impeachment de Dilma, alimentou o ódio na sociedade contra Lula e o PT, apoiou a perseguição da Lava Jato ao ex-presidente e seu partido e festejou a prisão injusta e ilegal de Lula, que o tirou da eleição de 2018. José Alencar tem uma trajetória completamente distinta. José Alencar entrou para a história como o vice-presidente brasileiro que evitou um golpe de Estado. O jornal O Globo contou como foi, em 2011. Confira.
"José Alencar barrou movimento que tentava impeachment de Lula
O Globo, 31/03/2011
https://oglobo.globo.com/politica/jose-alencar-barrou-movimento-que-tentava-impeachment-de-lula-2802746
BRASÍLIA - A fidelidade de José Alencar na relação com o ex-presidente Lula, tantas vezes exaltadas nos últimos dias, tornou-se incontestável no auge da crise do escândalo do mensalão, em agosto de 2005. Alencar foi procurado na ocasião, quando se falava na possibilidade de impeachment de Lula, por um grupo de parlamentares da base governista e também da oposição para sondá-lo sobre a eventualidade de ele assumir a Presidência da República. Ao ouvir a abordagem, Alencar, em tom firme e encerrando a conversa, disse que tentaria barrar qualquer movimento naquele sentido. Segundo participantes do encontro, afirmou:
- Entrei com o presidente Lula no governo e vou sair junto com ele.
Desse grupo fazia parte um parlamentar do PL, partido ao qual Alencar era filiado na época. De acordo com esse parlamentar, o ex-vice-presidente foi peça fundamental para barrar um movimento pelo impeachment de Lula. Esse gesto de lealdade de Alencar sempre foi ressaltado por Lula nas conversas no Planalto no pós-crise.
- Durante os momentos mais duros do governo a postura de Alencar foi absolutamente leal e parceira. Mostrando que não era homem chegado a golpe - disse o governador e ex-ministro do governo Lula, Jaques Wagner (PT-BA).
Para ministros que participaram do núcleo do governo Lula durante a crise do mensalão, se Alencar não tivesse sido tão firme na defesa de Lula, o movimento poderia ter crescido no Congresso.
- Havia uma movimentação pelo impechment de Lula. E Alencar foi de uma lealdade impressionante. O que chegou a ser sugerido é que, com a queda de Lula, ele assumiria o governo. Nem todo mundo teria o seu caráter - relembrava na quarta-feira um ex-ministro.
Aquele mês de agosto foi o pior momento da crise do mensalão, agravada com o depoimento do publicitário Duda Mendonça à CPI dos Correios. No Planalto, era grande a preocupação com a revelação do marqueteiro de que houve caixa dois no conjunto das campanhas do PT em 2002. Fragilizado politicamente, Lula temeu perder sustentação no Congresso.
Logo depois desse episódio, Alencar deixaria o PL para ajudar a fundar o PRB. Segundo relatos de interlocutores, o único momento em que a relação de Alencar e Lula ficou abalada foi pouco antes da campanha de 2006. Isso porque Lula cogitou substituí-lo como vice em sua chapa. Ele chegou a negociar nos bastidores com o PMDB e o nome do atual ministro da Defesa, Nelson Jobim, era um dos cotados. Ao saber da mágoa de Alencar com o episódio, Lula recuou e repetiu a dobradinha na chapa da reeleição."
Se Alckmin aprovou a traição de Michel Temer, por que agiria de modo diferente, se tivesse oportunidade? Será razoável esperar que alguém com esse tipo de caráter aja como o ex-vice-presidente, durante a ofensiva golpista de 2005? Não convém ignorar as evidencias. Se for vice de Lula e se houver uma nova ofensiva golpista, Alckmin agirá como Temer, não como José Alencar.
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ALCKMIN NÃO É ALENCAR (II)
Alckmin sempre foi neoliberal e José Alencar sempre esteve na trincheira política oposta à dele, foi antineoliberal durante os governos de FHC e foi antineoliberal também durante os governos de Lula. José Alencar foi antineoliberal até a morte. E era tão reconhecida essa sua militância que ele foi convidado para prefaciar um livro chamado "Novo-Desenvolvimentismo - Um projeto nacional de crescimento com eqüidade social", organizado pelos economistas João Sicsú, Luiz Fernando de Paula e Renaut Michel, com contribuições de Paulo Nogueira Batista, Carlos Eduardo Carvalho, Fernando Cardim de Carvalho, Leda Maria Paulani e Bresser-Pereira.
O texto do prefácio, que reproduzo abaixo, é uma crítica de Alencar à política econômica que Alckmin sempre defendeu e continua defendendo. Confira.
O PREFÁCIO DE JOSÉ ALENCAR
“Apontando alternativas
Este livro nos convida à reflexão. Foi escrito por um notável grupo de economistas, reunidos por esse grande brasileiro que é o Professor-Doutor João Sicsú, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, juntamente com o Doutor Luiz Fernando de Paula, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ, e com o Doutor Renaut Michel, da Universidade Candido Mendes – UCAM, e aborda praticamente todos os problemas relevantes da economia brasileira contemporânea com uma preocupação propositiva. É isso que o torna particularmente muito rico, magnífico mesmo e muito útil para o momento por que passa a economia política do país. Depois de mais de duas décadas de baixo crescimento econômico, todas as pessoas com alguma responsabilidade política estão buscando alternativas. Esses economistas fazem mais. Apontam-nas.
Não posso dizer que todas ou cada uma das alternativas sugeridas aqui devam ser seguidas ao pé da letra. Em Política, assim como nas Ciências Sociais e, particularmente, na Economia, não há certezas absolutas. O que há de relevante neste livro é que ele questiona uma sabedoria convencional que tem sido reprovada no teste da realidade. Na mesma linha, não se deixa embotar pela mediocridade do pensamento único, que prevaleceu no Brasil sobretudo nos oito anos do governo passado. Há aqui um esforço genuíno para escapar das armadilhas econômicas a que fomos levados. Em várias oportunidades, tenho chamado a atenção para a insustentabilidade das taxas de juros no Brasil. Tenho falado como cidadão, como empresário e, principalmente, como político. Na realidade, é a longa experiência empresarial que me autoriza a condenar esse despropositado regime de juros que empobrece nossa economia, levando milhares de empresários à falência e milhões de trabalhadores ao desemprego. Não é preciso ser acadêmico para enxergar o que tenho dito. No entanto, os profissionais mais prestigiados no Brasil contemporâneo têm sido aqueles que aceitam e até recomendam a manutenção dessa política de juros altos, ou regime de juros, como a denomino. Os bons brasileiros que escrevem este livro têm procurado apresentar com rigor científico o que sustento embasado na experiência. Daí também minha satisfação por ter sido convidado a fazer este prefácio.
Honrado pelo convite, aproveito para, de forma sucinta, trazer uma outra preocupação que permanece presente nas reflexões de quantos se dedicam aos temas ligados à economia brasileira.
É que, paralelamente aos juros e a eles ligada, há outra questão que precisa ser tratada: a carga tributária. Por que a carga tributária tem crescido tanto no Brasil? Em 1995, início do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, ela girava em torno de 28% do PIB e foi elevada a 35%.
Houve, portanto, um crescimento de 25%, ou de sete pontos percentuais. O PIB é estimado, hoje, em um trilhão e meio de reais. Então, sete por cento de um trilhão e meio significam cento e cinco bilhões de reais.
Além disso, tivemos naquele período – de 1995 a 2002 – um crescimento notável da dívida pública, que girava em torno de 30% do PIB, e foi para 55%. Ou seja, um crescimento, em oito anos, de 83%, ou vinte e cinco pontos percentuais.
Vinte e cinco por cento do PIB, de um trilhão e meio, é igual a trezentos e setenta e cinco bilhões de reais. Quando se aumenta uma dívida, pressupõe-se que tenha havido a correspondente entrada do dinheiro. Quando cresce a carga tributária, o pressuposto básico é o mesmo. Temos aí: trezentos e setenta e cinco bilhões que, somados aos cento e cinco bilhões, alcançam quatrocentos e oitenta bilhões de reais, em relação a somente um ano, o ano corrente, por exemplo, comparado ao último ano anterior ao início da escalada de majoração da dívida e da carga tributária.
No mesmo período, privatizaram-se várias empresas brasileiras: as siderúrgicas, o sistema nacional de telefonia, parte das companhias de eletricidade, a própria Vale do Rio Doce, que é um país. Todas essas privatizações renderam aproximadamente noventa bilhões de dólares.
Esses três itens – aumento da dívida, elevação da carga tributária e privatizações – representaram recursos da ordem de setecentos e cinqüenta bilhões de reais. No entanto, nesse período, não se realizaram, por exemplo, nem mesmo as obras indispensáveis e inadiáveis de infra-estrutura de transporte, como a construção de novas estradas de rodagem, novas ferrovias e hidrovias, onde o potencial brasileiro é imenso.
E isso continua. Por quê? Continua porque seguimos prisioneiros de uma estranha e inexplicável armadilha macroeconômica. A verdade é que não houve nem mesmo conservação das estradas existentes. Setecentos e cinqüenta bilhões de reais. Para onde foi tanto dinheiro? Grande parte foi para o pagamento dos juros. Aliás, é bom que nos lembremos: um dos principais motivos que nos levam ao enorme crescimento da carga tributária é o despropositado custo financeiro que pesa sobre nossa dívida, levando mais de um quarto de tudo o que se arrecada em nosso país.
Todos temos o direito de criticar a elevação da carga tributária, mas não podemos esquecer que, dela, quase trinta por cento vão para cobrir o custo na rolagem da nossa dívida. Alguém pode dizer: mas a rolagem da dívida é devida, os juros têm que ser pagos! É claro que os juros da dívida têm que ser pagos. Só que eles têm que ser pagos em taxas pelo menos aproximadas às praticadas pelo mercado internacional. Se analisarmos uma lista de 30 países - dados disponíveis no sítio da Global-Invest em agosto de 2004 -, inclusive o Brasil, verificamos algo surpreendente. A média geométrica da taxa de juros básica real com que esses países rolam sua dívida pública é de 0,4% ao ano. Nesse mesmo quadro, aparece o Brasil pagando 9,5% de taxa básica real de juros (prevista para os próximos 12 meses). Se analisarmos apenas os países desenvolvidos, a taxa básica real é 0,1% ao ano. Na verdade, muitos deles pagam taxas reais negativas. E se considerarmos, daquela lista, apenas os países chamados de emergentes, onde está o Brasil, a taxa básica real é 1% ao ano. Não vejo, e acredito que jamais verei, qualquer justificativa razoável para colocar o Brasil em tão adversa, imprópria, desfavorável, inadequada e desastrosa posição.
Poderão dizer: o José Alencar não tem autoridade para falar sobre isso, ele não é economista. Todos sabem da minha origem modesta, humilde. Sabem que fui criado no interior, na roça, de família pobre, nem escola havia. Estudei como autodidata. E então não sou autoridade para falar sobre isso. Mas, pela minha experiência de meio século de vida empresarial, não preciso ser economista para saber que, enquanto as atividades produtivas não puderem remunerar, com vantagem, os custos do capital, não poderá haver investimentos na escala que o Brasil precisa e pode, dado o seu potencial. E o capital é apenas um dos fatores de produção; os outros fatores também precisam ser remunerados.
Também não é preciso estudar Economia profundamente para saber que o nosso regime de juros é grandemente responsável pelo elevado risco-país: é fácil entender que os credores internacionais não podem praticar taxas de juros mais baixas para um país em que o seu próprio Banco Central mantém taxas de juros dessa natureza. Se nossas autoridades monetárias enxergam problemas que, segundo elas, exigem a adoção dessas elevadas taxas de juros, não seria razoável esperar que os credores internacionais tivessem outro comportamento. Essa é uma das principais razões para o elevado risco-Brasil, que cairia, seguramente, a partir do momento em que caíssem os juros a patamar civilizado.
Quando uma empresa leva sua duplicata a um banco, seja estatal ou privado, e paga, na melhor das hipóteses, trinta por cento de juros, ao ano, está correndo sério risco de fracasso, porque transfere, na operação, toda a sua renda para o banco. Nunca houve na história do Brasil maior transferência de renda, oriunda da produção, o que vale dizer, do trabalho, em benefício do sistema financeiro, nacional e internacional. Isso acontece há quase dez anos, ininterruptamente.
Tenho falado sobre isso em várias ocasiões, mas nem sempre sou bem compreendido. Numa dessas ocasiões, na Associação Comercial do Rio de Janeiro, observei que a Constituição de 1988 acabou com a censura, exceto a censura sobre quem decide bater nesse desastroso regime de juros. Essa continua. E tenho sido vítima dela, muitas vezes até pela distorção do que falo. Mas vou continuar na minha luta, porque os que me conhecem sabem que não ingressei na vida pública para atender a nenhuma necessidade material. Ingressei movido pelo sonho de ver um Brasil próspero e menos desigual. Para realizar esse sonho, que é de todos os brasileiros, tenho tentado oferecer alguma contribuição oriunda da minha experiência.
Recomendo a leitura dos ensaios que formam este livro. Neles há sérias advertências que abrem oportunidades para a reflexão nacional, de que tanto estamos precisando. Os brasileiros preocupados com o destino do Brasil e, sobretudo, com a superação das dificuldades por que temos passado, encontrarão espaço para exercitar a inteligência na busca de alternativas que possam consultar os elevados objetivos nacionais.
Brasília, agosto de 2004
José Alencar Gomes da Silva, Vice-Presidente da República”
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ALCKMIN NÃO É ALENCAR (III)
Se uma aliança entre Lula e Alckmin simbolizaria inequivocamente uma aliança entre a esquerda e o empresariado neoliberal, a aliança entre Lula e José Alencar simbolizou a aliança entre a esquerda e o empresariado antineoliberal, portanto são coisas completamente distintas. José Alencar foi um crítico constante do neoliberalismo que identificava no governo do qual era vice. Ele esteve desde o início do seu mandato sempre à esquerda do presidente da república, do ministro da fazenda e do presidente do Banco Central.
Nesta crônica que reproduzo abaixo, de junho de 2003, Jânio de Freitas identifica a divergência entre o vice presidente e os seus colegas da área econômica e reconhece a importância das suas investidas contra o dogmatismo neoliberal que prevalecia até mesmo naquele governo de esquerda.
De modo que o simbolismo que teve a vice-presidência de Alencar foi completamente diferente do simbolismo que teria uma vice-presidência de Alckmin.
José Alencar tensionou o governo Lula para a esquerda, sem provocar crises e sem conspirar contra o presidente.
Geraldo Alckmin, vice, tensionaria um futuro governo Lula para a direita e seria um fator constante de desestabilização do governo e uma constante ameaça ao mandato do presidente que estamos para eleger.
Confira o texto como sempre brilhante do Jânio de Freitas.
JANIO DE FREITAS
Entre Alencar e Palocci
Folha, 04/06/2003
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc0406200305.htm
A altitude dos juros já está custando caro, não só à imagem do governo, mas às pessoas de Antonio Palocci e, de quebra, Luiz Inácio Lula da Silva. A divergência que com eles tem o vice-presidente José Alencar expõe uma fragilidade conceitual do ministro da Fazenda que vai muito além, no pior sentido, do problema dos juros. Lula, por sua vez, já precisou passar à atitude de discursar em uma direção, contra os juros, e agir na outra, com apoio absoluto à política econômica centrada em juros estrangulantes.
Como preliminar, fique claro que o vice Alencar e o ministro não estavam respondendo um ao outro, como as aparências dadas ao noticiário sugeriram, ao falarem dos juros. As considerações de ambos foram quase simultâneas, o ministro em Genebra, o vice na interinidade presidencial em Brasília. Mas o choque foi frontal. José Alencar sustentando que a fixação de juros deve ser decisão política, Antonio Palocci afirmando que juros e Banco Central são assuntos apenas técnicos.
Para começar pelo Banco Central, quando Lula e Palocci escolheram um ex-presidente do BankBoston sem experiência alguma no setor público, mas ligado ao setor financeiro internacional privado, não escolheram um técnico de reconhecida capacitação, teórica e prática, para o cargo de governo. A escolha não foi feita em razão do Banco Central, mas da tranquilização de setores influentes. A nomeação do presidente do BC, portanto, não foi técnica, mas política. E o próprio Banco Central foi transformado em instrumento político. Também por motivo político, declarado "autônomo", como teria sido prometido a investidores norte-americanos em um certo encontro que Lula e assessores ainda não estão por narrar.
De um Banco Central em tais condições não sairá decisão alguma que não seja também política, se não for sobretudo política. Ainda que fosse outra a situação atual do BC, é inquietante que o ministro da Fazenda não se dê conta de que é componente sempre importante de política econômica. Repito: POLÍTICA econômica. E componente de política, política é. Daí que a direção de juros tenha funções, além de políticas, até ideológicas, por exemplo para direcionar a renda no sentido da concentração de classe.
Não tem procedência alguma, então, a idéia do ministro da Fazenda de que "ou se tem um Banco Central que combate a inflação ou se tem um BC político". Na mesma medida, é uma fantasia a sua idéia de que "a única pressão que vale para a política monetária é a pressão da inflação". Quando as ruas reagem a modos perversamente anti-sociais de combate à inflação, todos os governos, até hoje, reconsideraram depressa sua política socialmente elitista. Bolívia e Peru passaram por isso há bem pouco.
Com sua crítica didática aos juros de Palocci/Lula/Meirelles, o vice José Alencar está prestando também um serviço à democracia. Usa sua condição de segunda autoridade, na hierarquia do país, para impedir a sufocação do direito de divergência, que o governo tenta por meios cada vez mais sem disfarce.