domingo, 14 de agosto de 2016

Por eleição, o povo já teria abortado a ditadura.

Imperam o cinismo e a hipocrisia nas instituições do Estado e na imprensa corrupta da direita, enquanto na esquerda reina a angustia impotente pela iminência da consumação do golpe e instalação da ditadura. A sensação geral é de que o jogo está decidido e que só um milagre pode evitar o impeachment de Dilma. O golpe, ao que tudo indica, está dado, a direita vence e vence com enorme facilidade, porque a resistência da esquerda foi pífia. Foi fácil, fácil demais nos derrotar e isto é que é o mais preocupante. Porque uma ditadura é bem mais difícil de ser vencida do que um golpe, ainda mais parlamentar.

Resulta, a meu ver, este desfecho melancólico, com suas trágicas perspectivas de desdobramentos, de um gravíssimo erro de estratégia da esquerda. Desde abril, as pesquisas de opinião vinham indicando que a única bandeira com potencial para mobilizar a maioria da classe trabalhadora, permitindo a criação de uma barreira social de contenção contra o avanço do golpe, seria a bandeira da antecipação da eleição presidencial ou, pelo menos, da convocação de um plebiscito que dela tratasse. O erro da esquerda foi desprezar inteiramente este dado da realidade na definição da sua estratégia. E o fez porque tinha, claramente, como objetivo, antes a preservação do que passou a chamar de "discurso do golpe" do que efetivamente derrotar o golpe. A esquerda não estabeleceu uma estratégia para derrotar o golpe, mas uma estratégia para não perder o tal "discurso do golpe". E não perdeu mesmo. Só que o golpe venceu.

O que a esquerda até hoje não entendeu é que a direita sempre quis não só o golpe, mas também uma ditadura, porque o programa de governo que ela defende, a mando da burguesia, é um programa que é não só impossível de ser aprovado numa eleição, como impossível de ser implementado num regime democrático, em razão das fortes reações que tende a provocar na sociedade. A direita precisa de uma ditadura exatamente para inibir ou esmagar estas reações que prevê, assim como precisa do golpe para tomar o poder e assenhorear-se dos meios necessários para estabelecer a ditadura.

A esquerda subestimou a direita. Ou iludiu-se achando que a direita tinha aceitado a democracia ou enganou-se acreditando que a direita não teria coragem de avançar do golpe à ditadura. E, no entanto, era lógico que o faria, porque não teria sentido tomar o poder de forma antidemocrática, com objetivos tão bem definidos, para submeter-se a governar de forma democrática, inviabilizando a realização destes objetivos. A esquerda subestimou a vontade e a capacidade da direita de dar o golpe e criar a ditadura e agora subestima a própria ditadura, avaliando que ela não terá força para se sustentar durante muito tempo. Em 64, ninguém também imaginava que a ditadura durasse 20 anos, muita gente até se preparava para as eleições de 65 e as eleições não vieram, canceladas por um ato institucional dos militares.

A força da ditadura que será inaugurada por Michel Temer, mas que poderá a qualquer tempo passar a ser comandada por outros gerentes, estará exatamente no pacto de unidade da burguesia em torno do programa de governo que vem sendo anunciado. Tem tudo para ser um regime forte e muito difícil de ser vencido, exatamente pelo controle quase absoluto que a burguesia tem do Estado e dos grandes meios de comunicação de massa. Por isso a meses eu venho defendendo a tese de que o objetivo principal do PT e do restante da esquerda deveria ser impedir a posse definitiva de Temer, mesmo que para isso fosse necessário sacrificar o restante do mandato de Dilma, com a antecipação da eleição presidencial. Mas aí diziam que isto legitimaria o golpe e que nos tiraria o discurso. Como, se o objetivo do golpe não é outro senão a tomada do poder e é exatamente a tomada do poder que se pretendia e poderia, efetivamente, evitar com a campanha pela antecipação da eleição ou pelo plebiscito?

Não entendo, além disso, porque se atribui tanto valor ao tal discurso do golpe. O discurso do golpe, que não convenceu a maioria mais pobre da classe trabalhadora a participar das mobilizações contra o impeachment, não salvará a esquerda das perseguições que se intensificarão contra ela a partir de agora, nem poupará a classe trabalhadora dos prejuízos imensos que terá, quando seus direitos começarem a ser realmente atacados. O discurso do golpe sempre teve e continua tendo um potencial de mobilização social limitadíssimo. As pessoas movem-se pelo que desejam e o que as massas querem hoje e já queriam desde abril é mudança, através da antecipação da eleição presidencial ou, melhor ainda, de uma eleição geral. De modo que mesmo que a defesa da antecipação da eleição ou do plebiscito legitimassem o golpe - algo que eu não acredito que aconteça -, a perda do discurso não representaria um prejuízo maior para a democracia do que a vitória efetiva do golpe, com a tomada do poder pela direita e instalação de uma ditadura no país.

Penso que o discurso do golpe é, na verdade, uma auto-consolação de quem admite e aceita a derrota, acreditando que da derrota poderá erguer-se com facilidade e fortalecido, por estar do lado certo da História. Estas pessoas não consideram o fato mais que evidente de que é muito mais difícil derrubar uma ditadura instalada do que uma ditadura em gestação, como a que temos agora. Havia, até bem pouco tempo, condições para abortar a ditadura de Temer, através da mobilização social pela antecipação da eleição presidencial. Mas, como as lideranças de esquerda recusaram-se a adotar esta estratégia, reduziram-se as perspectivas disso acontecer à possibilidade, mais que remota, de que o impeachment seja derrotado por um natural e súbito despertar das consciências de senadores ou ministros do Supremo.

Passou, infelizmente, da hora de se tentar transformar o anseio das massas por mudanças, através de eleições imediatas, em mobilização nas ruas capaz de influenciar decisivamente o julgamento do processo de impeachment. Não tendo sido alterados nem o pensamento e as disposições da maioria dos trabalhadores, nem a estratégia do movimento contra o impeachment, não se pode esperar que haja mudanças significativas no padrão qualitativo e quantitativo das manifestações de agora até 25 de agosto, data da decisão final do senado. Continuará a esquerda isolada da maioria da classe trabalhadora, simplesmente por insistir numa estratégia e discurso que não correspondem aos anseios e disposições que ela expressa. Estas mobilizações continuarão sendo insuficientes e não terão força para impedir que o impeachment seja aprovado. Resta a quem tem consciência da gravidade do momento por que passamos, torcer por um milagre no senado ou no STF e preparar-se para enfrentar tempos difíceis. É difícil acreditar que esta esquerda que foi tão facilmente derrotada pelo golpe, possa não de ser, também facilmente, subjugada pela ditadura que do golpe se origina. A menos, é claro, que consiga tirar as devidas lições da derrota que sofre. Oxalá isto aconteça.

Silvio Melgarejo

15/08/2016

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