terça-feira, 17 de novembro de 2020

Relação entre direitos e deveres e os conflitos inerentes à democracia

Comentário publicado no Orkut em 19 de junho de 2011 sobre o texto intitulado "Fanatismo pelos Direitos Humanos", reproduzido ao fim deste post

Para garantir o respeito a um direito de todos é preciso tornar dever o respeito a este direito por todos. Isso me parece lógico. O reconhecimento de direitos universais pressupõe que o respeito a estes direitos seja um dever também universal. Uma coisa está vinculada a outra. Assim, se o indivíduo A tem um direito X, o indivíduo B tem o dever de respeitar o direito X de A. 

A razão de ser de todo dever é o atendimento de um direito. O dever existe para realizar o direito. A instituição de um direito há sempre de preceder à instituição de um dever porque todo dever decorre de um direito. O direito é fim, o dever é meio. É impossível inverter essa relação ou desvincular uma coisa da outra sem violentar brutalmente a lógica.

O que está parecendo é que o autor do texto em análise incomoda-se com as demandas sociais por direitos que ele próprio não reconhece como legítimos. Compreende, evidentemente, que a instituição desses direitos representaria, na outra face da moeda, a instituição de deveres que ele não gostaria de ter que cumprir. Mas o que mais evidente fica é a sua incompatibilidade com a democracia. Para demonstrar isso, destaco o seguinte trecho do texto:

“A nossa Europa vive de facto um fanatismo, quase religioso, pelos direitos descorando os deveres. Deste modo um povo sem clara noção das suas obrigações, isto é, deveres para com os outros e o Estado, e reclamando apenas os seus direitos entra numa espiral de conflitos pessoais e egoístas pela satisfação dos seus caprichos.” 

Ora, a democracia é um regime político baseado na livre expressão de demandas da sociedade ao Estado para a satisfação de necessidades. A instituição de direitos visa exatamente garantir o atendimento dessas demandas pela instituição concomitante de deveres a serem cumpridos pelo Estado e pela própria sociedade. O dever é o preço do direito. Exatamente por gerar deveres é que a instituição de direitos encontra sempre algum grau de resistência na sociedade e no Estado. O conflito de posições que aí se estabelece é a própria democracia se realizando, permitindo que, através da livre expressão e debate das ideias, consolide-se uma posição majoritária. 

A regra da democracia é o cumprimento da vontade da maioria, que é manifestada ao Estado através de canais institucionais e não institucionais. Portanto, o conflito não é algo estranho na democracia, é, ao contrário, algo inerente a ela. Só em regimes autoritários pode inexistir conflito, já que o conflito decorre do dissenso e as ditaduras se caracterizam exatamente pela supressão da liberdade de expressão do dissenso. Toda ditadura aparenta harmonia social. Mas essa aparente harmonia social das ditaduras é conseguida pelo sufocamento criminoso das demandas por direitos, algo que parece ser desejado pelo autor do texto em análise.

A ideia contida no texto de que o povo não teria noção de seus deveres, não passa de uma opinião preconceituosa que explica bem a profunda aversão revelada pelo autor aos regimes democráticos e seus imperativos. Pois, se falta ao povo, como ele sugere, discernimento e responsabilidade, pode-se a partir daí concluir que o povo, sendo maioria, não estaria apto a fazer escolhas e tomar decisões. Ao desqualificar-se a maioria, fica implícita a preferência pelo poder da minoria, já que não há alternativa diferente desta.  Ora, no momento em que à maioria retira-se o poder de fazer escolhas e tomar decisões e passa-se estes poderes a uma elite supostamente mais capaz e consciente que constitui minoria, dá-se a subversão da ordem democrática e o estabelecimento de um regime autoritário.

Não resta a menor dúvida, portanto, de que o texto de abertura do presente tópico é uma defesa muito mal disfarçada dos regimes políticos autoritários. O zelo pelo respeito às regras do jogo democrático – inscritas nas constituições dos países – e pelo funcionamento pleno das instituições que o permitem – em outras palavras, o cumprimento da lei – são qualificados como fanatismo religioso, afirmação que por si só demonstra o grau de apreço do autor do texto e de todos os que o subscrevem pelos ideais democráticos – a saber, apreço nenhum – e o quanto sentem-se inconformados por terem que se submeter a uma ordem política como esta, baseada em valores que eles repudiam. 

Para eles, a democracia seria a origem da desarmonia e da desordem social. Dão-na como razão da desarmonia e da desordem para que os que desejam a harmonia e a ordem cheguem, por si, à inelutável conclusão de que ela é incompatível com estas suas aspirações. Ora, associar a democracia à desarmonia e à desordem é uma descarada trapaça intelectual. A democracia não é, como tentam fazer crer, o regime da licenciosidade, um reino do vale tudo. Ela nada tem a ver com desordem e permissividade, é, ao contrário, uma forma de ordem. A democracia é o único regime político capaz de permitir às sociedades a construção de um ordenamento social naturalmente harmonioso, porque baseado nos valores da liberdade, da igualdade e da justiça. Os pruridos antidemocráticos sempre hão de existir porque sempre haverá quem se oponha a esses valores. E seu proselitismo jamais será proibido porque a tolerância está na natureza do próprio regime. Mas é também da natureza do regime democrático a liberdade de se contestar uma ideia considerada absurda ou perniciosa, como esta que vem solertemente se insinuando no discurso apresentado pelo autor do presente tópico. 

Silvio Melgarejo

19/06/2011
Revisado em 17/11/2020

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Texto comentado na íntegra

Fanatismo pelos Direitos Humanos

Por Fábio Vieira

Num tempo em que o Pós-Modernismo prospera, renegando as leis universais, as grandes orientações éticas e morais na Europa e no Mundo, colocando sob o mesmo plano todas as civilizações e culturas do mundo é necessário tomar consciência dos perigos e enganos que esta corrente traz dissimulados sob o manto da igualdade absoluta.

Uma das questões abordadas por esta corrente é a dos Direitos Humanos e a sua defesa inquestionável sobre todas as coisas, apesar de haver uma contradição aparente já que eles são universais...

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela ONU, em 1948, consagrou no plano mundial um conjunto de valores que reputados de essenciais, não apenas para servirem de ideal à acção humana, mas também para definirem o enquadramento legal dentro do qual os Estados podem legislar, julgar e actuar.

Estes valores são assumidos como universais. Neste sentido, apesar da diversidade das culturas e das sociedades, esta diversidade não pode ir contra estes valores. A Declaração serve não apenas para julgar os actos humanos (plano ético), mas também para avaliar e julgar a acção do diferentes Estados em relação aos seus cidadãos, configurando também um modelo de uma sociedade global livre e democrática.

Ora, o que aqui esta em causa não é questionar algo que nos garante a todos nós direitos inalienáveis e essenciais, mas sim, questionar a sua supremacia sobre os deveres tão importantes e necessários à harmoniosa convivência humana. A visão ingénua que se criou pela Europa e pelo mundo em que os direitos são superiores aos deveres tem de ser abandonada, porque a Europa - neste sentido fruto da revolução francesa e do seu apanágio do individualismo - esta a ser minada interiormente. A nossa Europa vive de facto um fanatismo, quase religioso, pelos direitos descorando os deveres. Deste modo um povo sem clara noção das suas obrigações, isto é, deveres para com os outros e o Estado, e reclamando apenas os seus direitos entra numa espiral de conflitos pessoais e egoístas pela satisfação dos seus caprichos.

Na verdade olhando para a declaração dos Direitos Humanos a palavra dever (Artigo 29°) aparece uma só vez enquanto direito pelo menos dez vezes mais, mostrando desde logo a discrepância a que a sociedade se submeteu, aceitando, deste modo, a sua própria corrosão civilizacional.

Nesta época em que tantos desafios, cada vez mais complexos, assolam a civilização europeia, e mesmo o nosso pais, é necessário que cada um esteja plenamente consciente dos seus deveres e os ponha em pratica em prol da comunidade e dos outros. Procedendo deste modo estaremos a criar uma corrente de harmonia que nos proporcionará de um modo natural os nossos direitos.

Sendo este um dos desafios maiores da Europa: a promoção em igualdade dos seus direitos e deveres, é também um momento fulcral para todos nós de renegarmos o individualismo egoísta em prol do colectivo transformador.

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