Havia no extinto Orkut uma comunidade chamada Direitos Humanos que eu frequentava muito assiduamente, atraído pela importância dos temas e pela riqueza dos debates que vez por outra surgiam por lá. Eu acompanhava esses debates com muito interesse e satisfação, aprendia muito e sentia-me verdadeiramente estimulado a refletir sobre o que era dito. Muitas vezes parecia não haver nada mais a ser dito, por ter-se desenvolvido argumentações e chegado a conclusões que me pareciam satisfatórias. Por isso em raras ocasiões senti a necessidade de manifestar uma opinião. E uma dessas raras ocasiões foi quando li o texto que reproduzo ao fim deste post, intitulado "A esquerda ama Bolsonaro, Olavo de Carvalho & Cia", cujo autor era o dono mesmo daquela comunidade, Artur Dogbert.
Em 11 de abril de 2011, eu publiquei um comentário a esse texto dele, sob o título "O messias virá!!! Será?!!!!". O texto de Artur fez-me pensar sobre linguagem e motivações políticas e sobre a dificuldade de uma parte da direita de assumir-se de direita. Vi ali a retórica típica da direita envergonhada, que tenta proteger-se da exposição indesejada negando valor aos conceitos de esquerda e direita, que desde a Revolução Francesa tem sido usados nos discursos políticos e nos discursos sobre a política. Tudo para não ser reconhecida como direita. Artur expressa claramente o desejo de que surja no Brasil "um ideólogo sério e ponderado que organize uma direita combativa, sóbria e respeitável". Seria uma espécie de messias salvador da direita que ele chama de "séria".
Só que sete anos depois, em 2018, a direita "séria" de Artur, impopular e sem votos, ajudaria a eleger presidente da república Jair Messias Bolsonaro, um homem que no seu texto ele disse fazer parte de "um grupo espertalhão histriônico que aglutina os direitosos mais toscos e ocupa um espaço na mídia que envergonha a direita séria e dificulta tremendamente a organização de uma direita combativa, sóbria e respeitável". Pois foi exatamente um desses "espertalhões histriônicos" que a direita séria de Artur veio a reconhecer na eleição presidencial de 2018 como messias salvador. E ele de fato a livrou de mais uma derrota para um candidato do Partido dos Trabalhadores.
O messias da direita veio. É combativo. Mas é tosco, truculento e não tem nada de sóbrio e responsável. E a tal direita séria de Artur, que já relutava em assumir ser direita, agora também constrange-se pela forma desavergonhada e grosseira como o seu representante na presidência da república, do qual depende para proteger seus interesses, vocaliza o que ela verdadeiramente pensa e diz na intimidade, longe dos olhos e ouvidos do povo.
A seguir, o meu comentário e logo abaixo o texto de Artur Dogbert.
Silvio Melgarejo
10/11/2020
O messias virá!!! Será?!!!!
Dogbert.
No post de abertura deste tópico, você cita as três correntes ideológicas que vê nas disputas políticas. Cita dois tipos de direita: a ‘direita tosca’ e a ‘direita séria, ponderada, combativa, sóbria e respeitável’. E no campo oposto, curiosamente, um só tipo de esquerda: a ‘esquerda malandra’. Nenhuma menção a uma esquerda ‘séria, ponderada, combativa, sóbria e respeitável’. Por que? Só a direita tem gente digna desses adjetivos?
Você diz que a ‘direita tosca’ envergonha ‘a direita séria e dificulta tremendamente a organização de uma direita combativa, sóbria e respeitável’. Como você sabe que há uma direita séria e que ela se envergonha de sua facção mais sincera, transparente e animada?
Você diz ainda que ‘o surgimento de um ideólogo sério e ponderado que organize uma direita combativa, sóbria e respeitável é tudo que a esquerda malandra não quer’. Fala isso com tanta convicção e sentimento que parece desejar ardentemente o surgimento do tal ideólogo e acreditar na respeitabilidade de algum postulado da direita ainda não enunciado pelos direitistas toscos. Que postulado seria esse?
Meu amigo, francamente, você parece mais incomodado com a ausência de verniz do que com a podridão da matéria que o verniz reveste. A direita elegante e culta não é menos direita que a direita tosca e histriônica. É, certamente, mais habilidosa, ardilosa, sutil e dissimulada, e, por isso, mesmo, ainda mais perigosa que a outra. Mas, em todo o mundo, defendem, as direitas, as mesmas abomináveis teses.
Neutralidade política não é a mesma coisa que nulidade política. Nas disputas políticas, o neutro sempre serve, mesmo involuntariamente, a algum dos lados. Há quem não saiba disso. Mas tem muita gente que apenas finge, por pudor, não saber a quem e a que propósitos está servindo com sua neutralidade.
Você diz que não é de direita, nem de esquerda. Há, no entanto, em seu discurso, uma generosidade maior com a direita, em quem você reconhece virtudes que não identifica na esquerda, chamada de malandra, além de expressar a esperança do surgimento de um providencial apóstolo da boa direita ou da direita do bem, que não dirá asneiras como os atuais arautos da direita tosca.
Fica claro, portanto, pelo seu discurso, que você reconhece a direita como portadora de contribuições importantes para a sociedade, que os incompetentes da direita tosca e histriônica são incapazes de traduzir e que o tal ideólogo sério, sóbrio, ponderado e respeitável, anunciaria do alto de todas a suas ilimitadas e elevadas virtudes.
Então, eu te pergunto: o que ele diria, afinal, se existisse, ou se você preferir, o que dirá quando vier? Que contribuição a direita teria a dar à sociedade que ainda não foi revelada pelos seus mais ardentes e comprometidos arautos? Isso!!! Vamos deixar de lado os rótulos e os adjetivos, e vamos tratar de conceitos. O que é, afinal, pra você, direita e esquerda? O que define, o que distingue, essencialmente, uma de outra, na sua opinião?
Como admitir que Jair Bolsonaro, Olavo de Carvalho, Diogo Mainardi, Reinaldo Azevedo e Júlio Severo, não sejam representantes da direita, se não se tem uma definição precisa do que seja direita? Como admitir, pela mesma razão, que a direita tenha algo a oferecer diferente daquilo que vendem os seus mais reconhecidos expoentes?
Espero que não se ofenda, Dogbert, afinal você diz não gostar de rótulos. Não quero rotulá-lo, só entender o que você pretende com este tópico. O seu discurso sugere que você sabe de alguma coisa sobre a direita, que nem a esquerda, nem a direita tosca, conhecem. O que é? Que direita é essa que por pura modéstia, guarda virtudes ocultas que se reveladas mudariam a imagem que a sociedade tem dela e que ela própria tem de si mesma?
Também tenho a impressão de que na discussão política fala-se muita besteira. Mas acho que essa impressão decorre do fato de que cada um atribui um significado diferente às palavras que usa pra montar o seu discurso. Assim origina-se um sem número de mal-entendidos e incompreensões. Na falta de conceitos claros, recorre-se aos adjetivos elogiosos ou depreciativos, conforme o caso. Daí para os xingamentos não falta muito. Apesar disso, não vejo ninguém muito disposto a tentar jogar luz nessa confusão, criando, por exemplo, um pequeno glossário, em que se defina o que é esquerda e direita, para a direita, e o que é esquerda e direita, para a esquerda. Desse modo, penso que se poderia fazer uma leitura mais exata dos discursos produzidos por oradores e escritores pertencentes a uma ou outra daquelas duas correntes que se opõem.
As palavras têm os significados que lhes atribuímos. Mas pra que haja boa comunicação é indispensável que todos os que as vão usar estejam cientes e de acordo quanto aos seus significados. A política é, talvez, a atividade humana em que mais se ignora esse imperativo da comunicação. E esse me parece ser o maior obstáculo ao desenvolvimento de debates produtivos, ao avanço de reflexões que poderiam tornar mais claras as diversas concepções políticas existentes em nossa sociedade. É preciso que o discurso político seja menos retórico e eloquente e mais didático e reflexivo, que fale antes à razão do interlocutor do que à sua sensibilidade emotiva, que toque mais a sua inteligência do que aos seus sentidos, que seja talvez menos excitante porém mais esclarecedora.
Isso não quer dizer que a política deva ser feita só com a cabeça. Até porque isso é impossível. Política se faz com o coração. Digo isso porque, pra mim, em cada posicionamento político que temos, revelamos o que o outro representa pra nós, o quanto o reconhecemos como portador ou não de direitos, o quanto reconhecemos no outro a mesma humanidade que sentimos em nós. Pois é isso mesmo, essa diferença de atitude, que distingue a esquerda da direita. A razão, na política, pode estar a serviço da opressão ou da liberdade, da exclusão ou da inclusão, do egoísmo ou da solidariedade, do ódio ou indiferença ou do amor. A razão é apenas instrumento do bem ou mal querer de cada um pelo seu próximo. A direta a usa de uma forma, a esquerda, de outra. Os fins que as animam as definem e as distinguem uma da outra. Os fins da esquerda, a esquerda revela, são declarados, por corresponderem aos anseios do povo. Os da direita, ao contrário, a direita esconde, são dissimulados, porque ao povo desagradariam. A direita precisa ser hipócrita, porque se for autêntica não ganha eleição. Ela tem que mentir, senão não tem chance, o povo não vota. Bolsonaro é só um pouco menos hipócrita do que FHC, Alckim ou José Serra. Na prática, todos defendem os interesses da mesma classe, a classe dominante na sociedade, a classe dos ricos: a burguesia.
Silvio Melgarejo
11/04/2011
Revisado em 12/11/2020
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O TEXTO COMENTADO
A esquerda ama Bolsonaro, Olavo de Carvalho & Cia.
Jair Bolsonaro e Olavo de Carvalho não são homens de direita. Da mesma forma, não são homens de direita Diego Mainardi, Reinaldo Azevedo e Júlio Severo. Essa turma é um grupo espertalhão histriônico que aglutina os direitosos mais toscos e ocupa um espaço na mídia que envergonha a direita séria e dificulta tremendamente a organização de uma direita combativa, sóbria e respeitável.
Tudo que a esquerda malandra quer é que Jair Bolsonaro, Olavo de Carvalho, Diogo Mainardi, Reinaldo Azevedo e Júlio Severo continuem vomitando as asneiras de sempre e atraindo manifestações de repúdio, gerando centenas ou milhares de artigos raivosos na blogosfera, sendo moralmente massacrados no Orkut, tendo que responder a inúmeros processos (ou tentativas de processo) e reagindo histrionicamente em nome da liberdade de expressão. Panes et circences.
O surgimento de um ideólogo sério e ponderado que organize uma direita combativa, sóbria e respeitável é tudo que a esquerda malandra não quer. Se não existissem Jair Bolsonaro, Olavo de Carvalho, Diogo Mainardi, Reinaldo Azevedo e Júlio Severo, a esquerda malandra confiaria a tarefa de bancar o pseudo-direitista histriônico a meia dúzia de seus mais leais representantes, que seriam regiamente recompensados por cumprir o papel de Boneco de Judas, aqueles bonecos da tradição quase extinta de malhar ou queimar Judas no Sábado de Aleluia.
Aliás... pensando bem... considerando a intensidade e freqüência que esse pessoal posta coisas completamente sem noção... considerando que eles não somente não aprendem nada com todos os interlocutores ponderados que os abordam mas ainda preferem polemizar e polarizar o debate com os mais barulhentos... considerando que a estratégia de radicalizar um debate é extremamente eficiente para aniquilar as chances de o bom senso preponderar... será mesmo que esses caras não são pagos pela esquerda só para achincalhar e trollar a organização da direita?
1) Eu não sou de direita. Nem de esquerda. Nem de centro. Nem sou necessariamente a favor ou contra qualquer coisa. Eu penso com meu próprio cérebro, não com rótulos, não com meu diploma, não com o título do meu cargo, não com a bênção deste ou daquele indivíduo ou grupo. Eu sou meu próprio ideólogo, posso concordar ou discordar livremente de algo dito pelo mais histriônico dos ultra-direitistas, pelo mais histérico dos ultra-esquerdistas ou pelo mais ponderado dos centristas, tudo depende do que *eu* considerar correto ou incorreto após a devida análise, entendimento e ponderação.
E, por sinal, "ponderação" não significa "contemporização". Ponderação é uma parte do processo de avaliação de uma idéia, quando se mede prós e contras, vantagens e desvantagens, consistência lógica e desejabilidade, para assumir um posicionamento consciente e bem informado, que pode ser moderado ou contundente. Ah, sim, eu sei que o Aristocles estava brincando, mas aproveitei a deixa.
2) Tem um trecho do texto do "makako kaos" que eu assino embaixo:
"O que assusta é a quantidade de retardados que aderem a causas ridículas. Isso sim apavora. Um bolsonaro não faria mais do que nos divertir em uma mesa de bar, não fosse o apoio que ele tem. Como ele representa, infelizmente, uma parte da população, é melhor mesmo que ele tenha voz e que as questões sejam debatidas, do que calar o idiota e transforma-lo em mártir, vítima e assim legitimar suas demandas. É útil também como identificador. Quando alguém cita olavos, bolsonaros e afins em uma conversa, já sabemos exatamente o que esperar e com que nível de intelectualidade estamos lidando, o que evita desgaste e perda de tempo.".
Grande verdade. Como eu queria desenvolver melhor esta habilidade.
Artur Dogbert, 11/04/2011