segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Governos petistas, protestos de junho e divisão da esquerda. Comentário sobre texto de Rosana Pinheiro-Machado.

(Comentário postado no Facebook em 6-10-2014, sobre o texto de Rosana Pinheiro-Machado que reproduzo ao fim desta mensagem)

Quem já tem o "pé no barro", não como abastado visitante voluntário da pobreza, mas por imposição da própria vida, sabe que o governo do PT não proporcionou à classe trabalhadora desse país apenas programas sociais. Aliás, muita gente bem informada, que nunca botou o "pé no barro", sabe disso. Pleno emprego, recuperação de 70% do poder de compra do salário mínimo, reajustes, com ganhos reais, todos os anos, para quase todas as categorias de trabalhadores; ampliação de direitos sociais, como no caso dos trabalhadores domésticos; não são programas sociais. São efeitos sociais de uma política econômica que tem como objetivo exatamente a proteção do emprego, do salário e dos direitos sociais dos trabalhadores.

A maioria dos que tem os "pés no barro" por imposição da vida, não sabe que o mundo vive, desde 2008, uma crise econômica devastadora que tem massacrado os trabalhadores de boa parte da Europa, com desemprego, arrocho salarial e cortes de direitos sociais e trabalhistas. E isso, graças à opção que os governos desses países fizeram de enfrentar a tal crise com políticas econômicas chamadas "de austeridade", que só foram e estão sendo austeras com os trabalhadores, poupando de maiores prejuízos a burguesia financeira, causadora da crise.

A maioria dos que têm os "pés no barro" e, pelo visto, muitos dos não têm, não sabe ou não lembra que em 2008, Lula, presidente, foi pressionado pela Globo, pelos partidos da oposição de direita e pelos bancos privados a fazer o mesmo que estavam fazendo os governos da Europa. E Lula não fez. O que ele fez foi exatamente o contrário do que se fez por lá. Reduziu juros, aumentou a oferta de crédito através dos bancos públicos, desonerou impostos em setores da economia que tem capacidade de gerar muito emprego, e ainda foi para a televisão explicar, didaticamente, aos trabalhadores que o emprego e o salário deles dependiam da manutenção da demanda por produtos e serviços e que, por isso, eles não deveriam evitar o consumo, como à época começavam a sugerir colunistas da imprensa neoliberal.

Os efeitos sociais das políticas econômicas aplicadas pelos governos petistas de Lula e Dilma, no Brasil, e pelos governos dos países europeus, durante a crise, evidenciaram-se nas manifestações de rua que os trabalhadores fizeram em 2013, lá e aqui. Na Europa os trabalhadores protestaram contra o desemprego, o arrocho salarial e o corte de direitos sociais e trabalhistas. Aqui no Brasil não se viu uma faixa ou cartaz sequer falando desses temas. Sabe por que? Porque a Europa tem esses problemas; o Brasil, não, embora inserido na mesma economia globalizada que tudo conecta, para o bem e para o mal.

Os protestos de junho de 2013 tiveram uma marca que os distingue de todas as demais manifestações de massas já havidas nesse país, como por exemplo, os mega-comícios pelas eleições diretas, em 1984. Essa marca é o repúdio à política, aos políticos e aos partidos indistintamente, que foram inclusive proibidos de participar. Quem não lembra da recorrente palavra de ordem, mil vezes repetida em grandes coros, "sem partido, sem partido". Uma pesquisa de opinião feita na época entre os manifestantes indicava que a maior parte gostaria de ter como presidente da república Joaquim Barbosa ou Marina Silva, dois vocalizadores notórios do discurso anti-política de então.

Os protestos de junho foram despolitizados porque ignoravam as conexões entre suas demandas e a luta de classes realmente existente no país, seja no cotidiano da sociedade, seja no interior das instituições do Estado. Por isso foram facilmente instrumentalizados pela direita e por isso se esgotaram sem ter alcançado outro saldo político relevante senão a derrubada imediata da aprovação popular ao governo Dilma, a eleição agora de um Congresso ultra conservador de direita, a reeleição de Geraldo Alckmin, em São Paulo no 1º turno; a condução ao 2º turno do candidato a governador de Sérgio Cabral, no Rio; e a possibilidade real de retorno dos tucanos à presidência da república.

Este é o legado político daqueles protestos tão admirados por certa intelectualidade de esquerda, encantada com a quantidade de manifestantes e com as performances teatrais e pirotécnicas dos black blocs. Nenhum destes entusiastas e seus seguidores esquece até hoje de perguntar, vez por outra, "onde está o Amarildo". Mas ninguém lembra nem quer lembrar de Santiago Andrade, o cinegrafista da Band, assassinado por aqueles dois jovens irresponsáveis, embriagados pela emoção de se sentirem heróis ante os olhos da gente mais velha, sabida e importante, que elogiava os seus feitos. Os dois estão agora presos. E os velhos sabichões que lhes cobriam de elogios seguem suas vidas tranquilos, sem dramas conscienciais.

Os governos Lula e Dilma, do PT, tiraram o Brasil do mapa da fome da ONU e elevaram o nível de vida de milhões de brasileiros, não apenas com programas sociais, mas sobretudo com uma política econômica que conseguiu garantir a inclusão social através do emprego formal e da elevação dos salários. Para os petistas isso é motivo de muita alegria e orgulho. Para os psolistas, ao contrário, são feitos irrelevantes, sobre os quais até evitam falar. Críticas ao Bolsa Família e ao Prouni, que centenas de vezes ouvi de militantes do PSOL, na internet, jamais seriam vocalizadas por militantes de um partido com base social popular, como o PT. A base social do PSOL é de classe média. É ou não é? E a classe média não tem os "pés no barro". E nem precisaria ter. Bastaria tentar se imaginar no lugar dos mais pobres e pensar nas suas necessidades mais prementes. Mas nem todo mundo, infelizmente, é capaz de exercitar essa empatia. O PT também tem em sua base muita gente de classe média. Só que a classe média do PT se coloca no lugar dos mais pobres, ao contrário da classe média do PSOL.

O PT nunca abandonou suas bandeiras históricas, mas sabe que não tem força política hoje para realizar todas elas, porque tem a consciência de que a esquerda é minoria na sociedade e no parlamento. Por isso, aproveita as contradições da burguesia e faz alianças com alguns de seus setores e com setores da própria direita, para viabilizar os avanços possíveis dentro do seu projeto de melhorar o padrão de vida dos trabalhadores. O PSOL condena essas alianças táticas que o PT fez e não reconhece os avanços alcançados com elas para o país. Elegeu de fato o PT como seu inimigo principal, e luta contra o PT de forma muito mais aguerrida do que contra o PSDB e o DEM. A verdade é que o PSOL é mais anti-petista do que anti-tucano. Isso só não vê quem não quer. Não foi um ponto fora da curva o apoio do falecido Plínio a José Serra, contra Haddad, na última eleição para prefeito de São Paulo. Plínio foi coerente com a linha ferozmente anti-petista de seu partido.

Os psolistas desejam ardentemente derrotar o PT e fazem de tudo para consegui-lo. Até tirar 40 milhões de reais anuais da saúde, como fizeram, quando ajudaram os tucanos a derrubarem a CPMF, em 2007. É esse o nível dos ataques. E tem muito mais exemplos. A militância petista demorou mas começou a reagir. O PSOL escolheu o seu lado. E hoje um petista não tem razão para considerá-lo um inimigo menos perigo desse grandioso processo de inclusão social que está curso no Brasil, do que a Globo, o PSDB e o DEM, com quem o PSOL tem mantido sempre uma relação de colaboração mútua. O PSOL dando crédito à farsa do Mensalão. A Globo abafando o caso Janira Rocha. Uma mão lavando a outra, cada qual escondendo suas verdades indesejáveis.

Dizer que os protestos de junho de 2013 eram despolitizados é uma opinião com a qual pode-se ou não concordar. Eu sustento o que digo com argumentos cujo valor pode perfeitamente ser questionado. Há pessoas, no entanto, muito arrogantes, que se sentem pessoalmente ofendidas por opiniões e argumentos contrários ao que pensam. Normalmente reagem com grande indignação. Às vezes, até chamam o interlocutor de arrogante - prá não dizer, talvez, outra coisa - e o mandam se aposentar - pensando, quem sabe, em mandar praquele lugar. É um arrogante elegante e educado, que mede as palavras, mas nem por isso menos arrogante e autoritário que os arrogantes grosseiros e mal educados que se encontram aos montes na internet.

***

Texto de Rosana Pinheiro-Machado que deu origem a este comentário:
Seis pontos de minha auto-crítica. Completamente desabafo, completamente insano, mas puramente verdadeiro.

1. A esquerda precisa fazer auto-crítica e entender que é minoria neste país. São esquerdas se matando neste país. Mas eu só queria lembrar que somos pequenos.

2. Deleuze não muda o Brasil. Uma visita na periferia muda. Aliás um pé no barro é o precisa muita gente que confunde a eleição do Bolsonaro e Feliciano com as classes médias coxinhas. Erro grave e desconectado. O preconceito e o fanatismo religioso estão em todas as classes, as quais reproduzem o pior de nosso passado: um ideário de modernidade baseado no distinção com raízes bem oligárquicas e escravagistas. E muita coisa mais.

3. Uma parte do PT (veja bem, uma parte) tem que parar de acusar o PSOL e as Jornadas de Junho (coisas bem diferentes, é verdade) de jogar para direita e a aceitar que existem muitas esquerdas - anarquistas, psolistas e até a deleuziana - e isso tende a crescer. É preciso olhar para seus próprios erros de trajetória, o abandono de algumas de suas bandeiras históricas e as alianças indesejadas pelo governo. Além de ser uma acusação desprovida de qualquer auto-crítica, ela é injusta. Afinal, a grande maioria dessas esquerdas plurais irá apoiar a Dilma no segundo turno por razões óbvias. E essa esquerda plural também apoia o programa social do PT, mas entende que ele não é tudo. E isso é um direito que quem está a esquerda.

4. Eu vivo repetindo, em diversos fóruns, que houve uma guinada à direita pós-junho. É bastante natural, na verdade, frente a uma esquerda desunida, que a direita ganhe espaço com seu poderio dos meios de comunicação. Ou todo mundo esqueceu que a Veja tem 5 milhões de likes no Facebook? Todo mundo esqueceu que uma parte imensa da população achou graça do negro menor de idade amarrado do poste?

5. Eu também vivo repetindo que é preciso que a esquerda coloque mais o pé no barro. Eu ando um pouco intolerante com palavras bonitas e delírios desconectados da realidade. Mas o pé no barro não significa falar com a militância: significa falar com quem não está identificado com nenhum partido, nem a esquerda nem à direita. Ampliar nossa base de diálogo. Ocupar os meios de comunicação disponíveis e parar de ter sentimentos desprezíveis por aqueles que fazem isso. Ser menos mesquinho em nossas próprias feridas e parar de odiar a classe média. Afinal, milhões de batalhadores do Brasil provavelmente votaram na Dilma porque estão satisfeitos com os programas socais (estes que eu defendo e admiro tanto e reconheço o grande trabalho do PT) mas também recebem informações da igreja e de grupos sectários, sexistas, racistas e homofóbicos e por aí vai.

6. Eu não pertenço à esquerda que acha que Junho foi a melhor coisa do mundo, mas também não pertenço àquela que despreza as Jornadas que tem a arrogância de dizer que elas foram despolitizadas. Para os que acham que junho foi "tudo" sugiro um dia na periferia, especialmente entre aqueles que não tiveram dinheiro para descer o morro e pegar um ônibus. Para os que acham que Junho e despolitização andam de mãos dadas, sugiro a aposentadoria.

Nós precisamos, eu repito, falar com a população que ainda é dialogável e chamá-la de coxinha não vai ajudar (eu disse, auto-crítica)

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