quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Fraude maquiada, ditadura disfarçada. E se perdermos?

Na sabatina do banco BTG/Pactual, Haddad afirmou que o PT respeitará o resultado da eleição fraudada. Será que a militância petista concorda?


Bastaram duas pesquisas desfavoráveis, Ibope e Datafolha, para a imprensa progressista, o PT e sua militância começarem afinal a admitir o óbvio: que a derrota do PT nesta eleição presidencial é uma possibilidade. Até então considerava-se absurda esta hipótese. A euforia com a rápida transferência das intenções de voto em Lula para Haddad apontada pelos primeiros levantamentos após o lançamento da candidatura substituta impedia que se enxergasse este risco real e gravíssimo que corremos. Penso que vivemos uma situação muitíssimo perigosa e é bom mesmo que tomemos consciência disso logo. A estratégia política até aqui festejada e considerada genial, pelo aparente e momentâneo êxito, embute riscos que a tornam uma verdadeira armadilha, ao criar para o PT uma situação que foi chamada pelo jornalista Reinaldo Azevedo de "paradoxo da legitimidade", que consiste no seguinte: o PT quer eleger um presidente legítimo numa eleição que, pela ausência de Lula, considera ilegítima. É evidente que isto é impossível, um presidente só pode ser legítimo se for legítima a eleição que o consagra. Não é portanto por acaso que, desde o lançamento da candidatura Haddad, desapareceu do discurso petista a afirmação de que "eleição sem Lula é fraude". Se é fraude, Haddad, eleito, não poderia ser presidente legítimo. Mas, então a eleição sem Lula não é fraude, é uma eleição legítima? Lula e o PT caíram na armadilha para onde a ditadura os vinha empurrando. Como tinham a convicção de que elegeriam Haddad, renunciaram à denúncia da fraude e à contestação da legitimidade da eleição. Ou talvez nem tenha sido por isso. Se vencermos, tudo bem. Mas... e se perdermos essa eleição, o que faremos, companheiros?

A certeza cega da vitória com Haddad não vinha impedindo apenas que se visse o risco de derrota e suas gravíssimas consequências. Impedia também que se percebesse como derrota, uma derrota imensa, a desistência voluntária de Lula de manter até o fim a sua candidatura. A desistência tem sido vista até, ao contrário, pela maioria da militância petista, como uma jogada de mestre, desconsiderando o fato de que a "jogada" vinha sendo sugerida de modo insistente pela própria direita golpista. O regime expressou que era este o seu desejo e Lula acabou cedendo à chantagem dos que ameaçavam impugnar a chapa petista. Não precisava tê-lo feito, não precisava ceder. Que impugnassem a chapa e arcassem com as consequências do seu ato infame. A luta política não se resume a eleições e o ajuste de contas, se não feito nas urnas, pode dar-se nas ruas, com igual ou maior eficácia.

Considero, por isso, um erro gravíssimo esta decisão tomada, cujo primeiro efeito foi a redução da, até então, crescente tensão entre o regime e a opinião pública do país e do mundo, na mesma proporção em que se reduziu a força da narrativa da fraude e a capacidade de contestação da legitimidade da eleição presidencial, na hipótese não descartável de uma derrota. Se uma derrota de Haddad fosse impossível ou pelo menos improvável, poderia até fazer algum sentido a desistência de Lula em seu favor. O problema é que nunca houve razão para se acreditar que uma derrota é impossível ou improvável. E uma questão fundamental que precisaria ser pensada desde o início pela militância petista é a seguinte: e se a derrota acontecer, o que pretende fazer o PT? Pretende denunciar a fraude consumada, contestar a validade do pleito e lutar para derrubar o governo ilegítimo desde o dia da sua posse; ou pretende apenas reclamar da fraude, mas aceitar o resultado do pleito e esperar pela eleição de 2022 para, só então, tentar derrotar as forças golpistas empossadas e apeá-las do governo?

Não duvido que haja petistas inclinados a assumirem esta segunda atitude, de absoluta complacência e tolerância com o regime golpista. Eu discordo inteiramente disso. Para mim, não pode haver tolerância nem complacência com ditaduras e, para mim, ditadura não se derrota com voto nas urnas, ditadura se derruba com luta nas ruas. Aos que compartilham desta minha convicção, só a estes, que aos conformados e aos iludidos nem vale a pena falar, peço que pensem: que fatos políticos contribuiriam mais para o aumento da tensão entre o regime e a opinião pública nacional e internacional? A impugnação da candidatura Lula e da chapa petista pelo Judiciário e a contestação pelo PT da legitimidade da eleição presidencial ao longo de toda a campanha; ou a desistência voluntária do ex-presidente, sua substituição por outro candidato e a renúncia do partido à denúncia da fraude? Qual destes dois contextos resultaria em maior desaprovação interna e externa à ditadura brasileira? Qual destes dois contextos evidenciaria mais os vícios do processo eleitoral que está em curso e a verdadeira natureza do regime político vigente no Brasil? Qual destes dois contextos tornaria mais visível a injustiça que se comete contra o povo e contra aquele que o povo deseja eleger presidente? Qual destes dois contextos provocaria maior revolta, clamor e inconformismo entre os justos do Brasil e do mundo? Qual destes dois contextos tornaria o ambiente social mais favorável à mobilização das massas para a derrubada de um virtual governo ilegítimo, antidemocrático, antipopular e antinacional? Será que alguém tem alguma dúvida?

A desistência de Lula e sua substituição por um outro candidato simplesmente poupou a ditadura do ônus que teria ao cometer sua arbitrariedade mais explícita e abominável, cobrindo o processo eleitoral fraudulento com um manto de falsa normalidade que só aos golpistas convém. Era tudo que o regime precisava para retomar o fôlego e elevar sua expectativa de vida: uma capa de normalidade. Haddad e Manuela são então a bela e suave maquiagem com que se disfarça esta verdadeira aberração política que é a eleição presidencial sem Lula. Aos muito otimistas com suas chances de vitória, lembro uma vez mais que fazemos exatamente o que os golpistas nos cobravam que fizéssemos e peço que atentem para as reações de alívio e regozijo com que receberam a boa notícia que lhes demos. Estamos legitimando uma eleição fraudada, admitindo como válida a falsificação da vontade do povo e, com isso, nos desarmando para o combate à ditadura e reduzindo imensamente a pressão interna e externa sobre o regime.

Se vencermos, será menor o prejuízo para a luta por democracia, mas não irrelevante, porque o povo terá sido impedido de votar no candidato de sua preferência. Mas se perdermos - o que, repito, não é impossível nem improvável -, será difícil, muito difícil reverter o desalento em nossas hostes. O sentimento de desmoralização e impotência, com a auto-imolação de Lula e o esvaziamento de sentido da denúncia de fraude, demoraria a ser superado. Para quem sempre quis "virar a página do golpe" e agora já quer "virar a página da fraude" - que é um golpe antecipado - e esperar até a próxima eleição, respeitando o mandato de mais um presidente ilegítimo, isto não representaria maior prejuízo. Mas para quem pretende, em caso de derrota, lutar para derrubar o governo ilegítimo, seria um prejuízo enorme.

Sempre acreditei e continuo acreditando que a estratégia política correta seria manter a candidatura de Lula, afrontando os generais e juízes e obrigando-os a consumarem a arbitrariedade suprema que os exporia aos olhos do país e do mundo como algozes inequívocos da democracia brasileira. Sempre acreditei que a evidência gritante da fraude deveria ser amplamente denunciada, que a validade da eleição deveria ser fortemente contestada desde o curso mesmo da campanha, que o voto nulo deveria ser pregado como expressão institucional dessa contestação ao pleito e que a mobilização das massas para o confronto com o regime nas ruas seria a única forma de derrubá-lo e restabelecer, pelo menos, aquele precário estado de direito que tínhamos no país desde 1985.

Mas Lula e a maioria dos dirigentes petistas não conseguem mesmo pensar fora da caixinha da luta política institucional. Presos aos preconceitos e dogmas disseminados pela burguesia exatamente para anestesiar mentalmente os trabalhadores e facilitar sua dominação, não admitem outra forma de ação partidária além das disputas eleitorais, parlamentares e judiciais, tuteladas e manipuladas pela classe dominante. Mobilização social, só se for para a busca de votos. Reduziram o PT, que nasceu pretendendo ser dirigente das lutas cotidianas dos trabalhadores por liberdade, democracia e socialismo, a uma mera legenda eleitoral, adaptada e conformada com os limites da oligarquia burguesa e do capitalismo. Ficar fora de uma eleição, mesmo uma eleição fraudada como esta que temos, é considerada a maior das tragédias imagináveis. Fora das eleições, dos parlamentos e dos governos, considera-se que o partido seria inútil, não teria nenhuma função relevante. Por isso, desistiu Lula de sua candidatura e por isso indicou Fernando Haddad, para que o PT não ficasse fora da eleição presidencial. Como se votar fosse a única forma legítima de resistência e combate ao neoliberalismo e ao fascismo.

É evidente que Lula, Haddad e a direção do PT sabem dos riscos da estratégia que adotaram, sabem que a derrota é uma possibilidade. E é evidente também que já definiram o que farão em caso de derrota. Pode-se deduzir facilmente o que seria, considerando o histórico das escolhas políticas feitas nas últimas décadas. Mas nem precisamos deduzir, porque o plano já foi anunciado pelo próprio Fernando Haddad. Na sabatina do banco de investimentos BTG/Pactual, em 9 de agosto, da qual participou na condição de candidato a vice e porta-voz de Lula, perguntou-lhe o jornalista Reinaldo Azevedo:

- "Candidato, (...) o PT tem dito que uma eleição sem o Lula perde legitimidade. Chegou-se a discutir (...) se o PT lançaria ou não candidato, participaria ou não da eleição, caso o Lula não pudesse disputar. E, felizmente, dada a importância que tem o partido, [o PT] decidiu disputar a eleição. Se o senhor vencer a eleição, eu acho que o PT não vai alegar ilegitimidade da eleição, o senhor será o presidente legítimo, aliás, qualquer um que seja eleito será um presidente legítimo. Se algum outro [candidato] vencer, o PT reconhece a legitimidade dessa eleição, mesmo sem o Lula, mas aí não com o Fernando Haddad presidente?"

Destaque para o seguinte trecho da pergunta: "felizmente, dada a importância que tem o partido, [o PT] decidiu disputar a eleição". Por que "felizmente", se Reinaldo Azevedo é um antipetista ferrenho? Porque ao participar da eleição o PT está na prática legitimando a eleição. O antipetista Azevedo praticamente agradece ao PT, expressando certamente o alívio da burguesia e de toda a direita golpista.

Respondeu-lhe, então, Fernando Haddad - prestem bem atenção ao que ele vai dizer:

- "Olha, (...) o PT não vai se furtar a apoiar medidas na direção correta, seja de que governo for. (...) Eu sou da tese de que nós temos que estabilizar as instituições."

Estabilizar significa tornar estável. E estável é a condição do que está bem assente e livre de abalos, do que está firme, seguro, consolidado, do que é permanente, duradouro e constante. Estabilizar as instituições de uma ditadura nada mais é do que consolidar esta ditadura e garantir sua continuidade indefinida no tempo. A mensagem de Haddad foi, portanto, bastante clara: se o PT for derrotado, vai respeitar o resultado da eleição fraudada, não vai contestar a legitimidade do pleito e só vai tentar apear do poder as forças golpistas na longínqua eleição presidencial de 2022.

A imprensa progressista e a militância petista não deram a menor atenção a esta resposta de Haddad, que nas circunstâncias em que se deu - uma entrevista num evento promovido por um banco -, significa um verdadeiro compromisso político com o mercado financeiro, patrocinador e beneficiário do golpe e da ditadura a que o país vem sendo submetido.

É evidente que esta posição da direção do PT tranquiliza imensamente os próceres e apoiadores da ditadura. Pois se o PT contesta o resultado da eleição, a crise política se agrava, as massas imensamente insatisfeitas tendem a se mobilizar e o governo ilegítimo, mesmo que reaja com violência, pode não suportar a pressão e cair. O que Haddad diz - e, francamente, já não me surpreende - é que o PT não quer mesmo derrubar um virtual governo ilegítimo nas ruas, seja qual for o presidente. O que o PT quer e faz questão é de derrotar o governo ilegítimo nas urnas... lá em 2022! Alguém consegue imaginar o que seria ter o país governado durante os próximos 4 anos por Jair Bolsonaro ou Geraldo Alckmin?

É preciso saber se o povo teria paciência para esperar tanto tempo sofrendo, se ao invés de pacificar o conflito entre as classes, como pretende, o PT não estaria contribuindo para uma revolta popular ainda maior, só que explosiva, desorganizada e completamente selvagem, que o teria também como alvo, exatamente pelo papel de pelego que estará se dispondo a desempenhar. E é preciso também combinar com a militância petista, que ainda não sabe desse compromisso entre Haddad e os banqueiros. Essa discussão ainda não foi feita pelo PT de forma clara com a sua militância. O plano da ditadura sempre foi se legitimar através de uma vitória eleitoral que não fosse contestada pelo PT. Será que a militância petista vai permitir que isso aconteça? Vamos a ver.

Silvio Melgarejo

04/10/2018

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