quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Coerência, universalidade e atemporalidade: atributos da verdadeira Lei de Deus.

Por Silvio Melgarejo -  Algo que a história das religiões cristãs demonstra à exaustão é que o sentido essencial e os objetivos originais do Cristianismo de Jesus foram, desde muito cedo, substituídos por outros que lhe eram absolutamente estranhos. Esmagado sob o peso da farta produção doutrinária de alguns apóstolos e dos criativos teólogos das religiões institucionalizadas, o verdadeiro Cristianismo é como uma jazida de metal precioso coberta por grossas e numerosas camadas de cascalho e pedra. Até hoje, a maior parte dos que se dizem cristãos toma pedra e cascalho por metal precioso. Não é de se estranhar que tanto mal se faça e se haja feito em nome de Deus.

Os evangelistas narram que certa vez Jesus foi abordado por um fariseu que lhe perguntou:
- Qual é o maior mandamento da lei?
Jesus respondeu-lhe:
- Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda tua alma e de todo o teu espírito (Deutoronômio, capítulo 6, versículo 5). Este é o maior e o primeiro mandamento.
E, deixando claro que só este não bastava, acrescentou:
- E o segundo, semelhante a este, é: Amarás teu próximo como a ti mesmo (Levítico, capítulo 19, versículo 18).
Finalizando a resposta, Jesus decretou algo que boa  parte da comunidade cristã insiste, ainda hoje, em ignorar. Ele disse:
- Nesses dois mandamentos se resumem toda a lei e os profetas. (Evangelho de Mateus, capítulo 22, versículos 34 a 40)
No evangelho de Marcos, capítulo 12, versículos 28 a 31, a conclusão do diálogo é ainda mais explícita. Ali, Ele afirma:
- Outro mandamento maior do que estes não existe.
É preciso que se entenda, de uma vez por todas, que o verdadeiro Cristianismo não é igual ao Mosaísmo, não é igual ao Paulinismo, tampouco constitui-se dos dogmas, liturgias e exegeses com os quais o verdadeiro Cristianismo acabou sendo ao longo do tempo corrompido e embrulhado pelos teólogos das diversas religiões. O verdadeiro Cristianismo é, nada mais, nada menos, do que aquela proposta ética resumida numa única frase, dita por Jesus ao fariseu provocador, no episódio contado pelos evangelistas: amar ao próximo como a si mesmo. Este é que é o  verdadeiro Cristianismo.

A resposta de Jesus ao fariseu, deixa muito claro que, no que diz respeito à relação do homem com os outros homens, “amar ao próximo como a si mesmo” é o maior mandamento da lei de Deus, não há nenhum outro que lhe esteja acima. É, portanto, como cláusula pétrea da constituição divina revelada à humanidade. Todo o resto são leis ordinárias que, se não decorrem dela ou para ela não convergem, não podem nunca ser admitidas como procedentes de Deus.

Se a Lei de Deus é, como Deus, perfeita e imutável, tem-se, por lógico, que não tenha contradições, porque Deus, sendo perfeito, não pode se contradizer. Quem lê, no entanto, a Bíblia, tida pelos religiosos fundamentalistas como livro sagrado inspirado pelo próprio Deus, vê-se diante de uma quantidade imensa de contradições e incoerências. Através de Moisés, Deus teria ensinado, por exemplo, a Lei de Talião, do “olho por olho, dente por dente”. Através de Jesus, ensinou o perdão das ofensas que revoga a lei anterior. Ora, se Deus é contraditório e incoerente, então não é perfeito.

Uma lei perfeita não pode ter incoerências e contradições. No caso da Bíblia, atribuir a Deus tudo o que ela contém significa negar a perfeição de Deus. Admitir, por outro lado, que uma possível ou provável inspiração divina possa ter sofrido nocivas interferências por parte de seus receptores e divulgadores humanos – os profetas, evangelistas, tradutores e teólogos – que teriam corrompido a mensagem original da divindade com a deformação de alguns conceitos e a adição de outros estranhos a ela, permite que se adote em relação à Bíblia uma atitude mais cautelosa e construtiva, no que diz respeito à busca e ao resgate do que haja efetivamente, dentro dela, que possa ser considerado parte de uma Lei perfeita e imutável como se supõe ser o próprio Deus.

Jesus veio ao mundo para separar o joio do trigo, a lei dos homens da Lei de Deus, para dar a Moisés o que é de Moisés e a Deus o que é de Deus. São Paulo, infelizmente, tratou de refazer essa mistura. Os livros sagrados do judaísmo de então, incorporados pelo catolicismo e pelo protestantismo, trazem misturados os mandamentos de Moisés com os mandamentos de Deus, como se fizessem parte de um mesmo conjunto indivisível. Ora, Moisés foi, além de líder espiritual, líder político e legislador de seu povo, o povo hebreu. Tudo o que disse tinha, é fácil de se constatar pela leitura dos textos, um destinatário único e certo que era o povo hebreu governado por ele naquele contexto histórico e cultural.

Jesus, ao contrário de Moisés, era apenas líder espiritual, só que de um povo muito mais numeroso. Quase tudo o que disse, e que pode ser registrado pelos evangelistas, tinha como destinatária a humanidade inteira de todos os tempos vindouros. Por isso, enquanto a maior parte da lei mosaica carece de aplicabilidade nos tempos modernos, por estar completamente vinculada ao momento histórico e ao espaço geográfico em que foi concebida, a lei cristã mantem até hoje o seu valor para indivíduos e sociedades, exatamente por ter um caráter inteiramente atemporal e universal.

A moral que recomenda o amor ao próximo como a si mesmo vale hoje, para o mundo todo, como valia há dois mil anos em Jerusalém. E continuará valendo. Não por sua suposta procedência divina, mas pelo seu valor intrínseco, como meio para que os indivíduos alcancem o equilíbrio psíquico e para que as sociedades alcancem a justiça e a paz em suas relações internas e externas, nas relações interpessoais e intergrupos dentro de um povo, e nas relações de um povo com os outros povos.

A corrupção do Cristianismo de Jesus começa quando Paulo, fariseu convertido, avoca para si o título de apóstolo, apropria-se do legado do Cristo e o dilui na farta teologia própria que produz, sob nítida influência dos livros sagrados do judaísmo. Assim como Moisés, Paulo atribuiu a Deus incontáveis preceitos de procedência humana, que, sobre os preceitos de procedência realmente divina, acabaram prevalecendo. Houve, por assim dizer, uma fraude do Cristianismo e da própria Lei de Deus, cujas versões corrompidas acabaram sendo aceitas como verdadeiras e válidas pela comunidade cristã nascente, no momento mesmo em que ela se expandia e se universalizava.  Todo mal cometido pela Igreja Católica ao longo de séculos de história adveio da corrupção precoce do Cristianismo de Jesus, por aquele mesmo que viria a ser o seu maior divulgador: São Paulo. Esta é a tese que pretendo sustentar a partir de agora.

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