segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Alguns conceitos políticos básicos.

Na introdução do seu Dicionário de Política, diz Norberto Bobbio que "a linguagem política é notoriamente ambígua", que "a maior parte dos termos usados no discurso político tem significados diversos", que "nenhum termo da linguagem política é ideologicamente neutro" e que "cada um deles pode ser usado com base na orientação política do usuário". Esta imprecisão de significados que caracteriza o vocabulário político é, indiscutivelmente, a maior fonte que existe de confusões e mal-entendidos nos diálogos e debates públicos, onde o que mais se vê são interlocutores, leitores e plateias atribuindo às palavras que ouvem ou leem significados diferentes dos atribuídos por aqueles que as vocalizam ou publicam, alterando inteiramente o sentido das mensagens que eles pretendem transmitir. Por isso escrevo este artigo. Escrevo para dar publicidade aos significados que atribuo a alguns conceitos políticos básicos, que eu considero fundamentais para se descrever e explicar a política no Brasil de hoje. São definições curtas e simples, em alguns casos com breves comentários, para que as pessoas entendam o que realmente quero dizer quando uso estes termos.

"Uma definição", disse Aristóteles, "é uma frase que significa a essência de uma coisa". Pois o que me proponho é exatamente destacar, dentre os muitos atributos que possam fazer parte de cada conceito político, apenas aquele que, no meu entender, constitua a essência do objeto ou fenômeno a que ele se refere. Penso que a imprecisão do vocabulário político é uma consequência da excessiva elasticidade que se permite que os conceitos políticos tenham. Como qualquer coisa, material ou abstrata, o objeto ou fenômeno político pode ter realmente milhões de atributos. Mas a escolha do que deve ser considerado o atributo essencial é uma escolha exclusivamente política. Não pretendo aqui impor a simplificação forçada do que seja complexo. Quero apenas tornar claro o que vejo ser fonte de confusões e equívocos nas discussões políticas, lembrando acima de tudo que toda disputa política começa pela disputa no campo dos conceitos, na luta pela determinação dos significados que devem ser atribuídos pela sociedade às palavras usadas nas reflexões e nos discursos políticos.

Norberto Bobbio está coberto de razão quando afirma que "nenhum termo da linguagem política é ideologicamente neutro". Por isso, não pode a esquerda descuidar da definição clara e inequívoca e da afirmação permanente e peremptória dos seus próprios conceitos e ficar tão receptiva e permeável quanto às vezes se mostra aos conceitos da ideologia burguesa, apregoados pela direita. Porque se os conceitos são os instrumentos com que descrevemos e julgamos a realidade, usar inadvertidamente os conceitos da direita significa assumir na prática o ponto de vista da direita e reproduzir a sua narrativa da história. É este o risco que permanentemente corre uma esquerda espontaneísta, pouco afeita à reflexão e ao estudo e completamente avessa à teoria e à educação política, que são as únicas vacinas capazes de evitar a contaminação ideológica.

O que é política? O que é Estado, governo e partido político?  O que é regime político, democracia e oligarquia? O que é Estado de direito, ditadura e democracia burguesa? E o que é, afinal, golpe de Estado? É sobre estes conceitos que quero dar minha versão para, além de me fazer bem entendido, provocar entre os meus pares de militância de esquerda alguma reflexão e, quem sabe, algum debate. Mas, para fazê-lo, para explicar o significado que atribuo a cada um destes termos, considero necessário definir antes o que é liberdade e poder e o que é organização e administração.


I - Liberdade, poder e soberania


Liberdade é a capacidade de realização da própria vontade.

Poder é a capacidade de imposição da própria vontade a outrem.

Relação entre poder e liberdade - Submeter à própria vontade a vontade de alguém significa negar a liberdade deste alguém. Em qualquer sociedade, o poder de uns limitará sempre, em alguma medida, a liberdade dos outros. Quanto maior o poder de uma pessoa, maior a sua liberdade e menor a liberdade dos que a cercam. A medida da liberdade corresponderá sempre à medida do poder que se tenha. Mas a medida deste poder será sempre determinada pela medida do acesso que se tenha aos meios que lhe proporcionem. É por isso que, muito frequentemente, se chama de poder também ao meio que proporciona poder.

Soberania é domínio pleno, o poder total que se impõe sobre alguém ou sobre algo.


II - Organização e administração


Organização é uma unidade social deliberadamente constituída para usar os seus recursos na implementação de ações destinadas à realização de algum objetivo.

Administração é a ciência social que estuda as organizações e busca definir as práticas mais adequadas para que elas alcancem os seus objetivos. Administração é também o nome que se dá à mais importante concepção desta ciência social, que é o processo administrativo. O processo administrativo é um processo composto de quatro etapas, que são:
Planejamento - definição dos objetivos da organização e das ações necessárias para alcançá-los.

Organização - definição de quem faz o que, onde, quando e com que recursos nas ações planejadas.

Execução - comando ou liderança da realização das ações planejadas.

Controle - avaliação permanente da qualidade da execução das ações planejadas e dos seus resultados, com a possibilidade da recomendação de mudanças corretivas em qualquer uma das etapas anteriores. 

III - Conceitos políticos


Estado é a organização constituída para dar a quem o comande poder sobre a sociedade, ou seja, para dar a quem o comande a capacidade de limitar a liberdade da sociedade para lhe impor uma determinada ordem.

Governo é a imposição de uma determinada ordem à sociedade. É também o nome que se dá à parte do Estado responsável pela execução das ações estabelecidas com este fim.

Política, em sentido amplo, é a relação mútua entre o Estado e a sociedade. Em sentido mais estrito, política é a relação social de disputa pela prevalência da vontade de algum setor da sociedade nos processos decisórios que definem os objetivos do Estado – estes objetivos constituem a ordem que se pretende que o Estado imponha à sociedade –, as ações que o Estado deve realizar para alcançar estes objetivos – as ações de governo –, quem deve comandar a realização destas ações estabelecidas – quem deve constituir o governo, quem deve governar – e a forma como o Estado deve se organizar e funcionar para garantir que as ações definidas sejam efetivamente cumpridas. Política é, portanto, nesta acepção mais estrita, a disputa pelo comando da administração do Estado.

Partido político é a organização constituída para disputar o comando da administração do Estado.

Regime político é a forma assumida pelos processos decisórios do Estado e o modo como o Estado se relaciona com a sociedade em um determinado contexto histórico. É a forma de governo, o modo como o Estado define e impõe uma determinada ordem à sociedade. Consolidou-se ao longo da história como principal critério para a classificação dos regimes políticos o da quantidade de pessoas que participam das decisões que determinam as ações do Estado. O outro critério vem sendo o da obediência ou não destes processos decisórios e da implementação das resoluções tomadas a uma constituição que limite o poder do Estado, estabelecendo, como direitos dos cidadãos, um conjunto de garantias e liberdades fundamentais.

Poder político é a capacidade de impor a própria vontade ao Estado, tornando-o instrumento da imposição desta vontade ao restante da sociedade.

Democracia ou estado democrático é o regime político em que os processos decisórios do Estado são controlados e comandados pela maioria pobre da sociedade, constituída pela classe trabalhadora, com resultados sempre correspondentes aos seus interesses e à sua vontade. Democracia nada mais é, portanto, do que o controle e comando da administração do Estado pela classe trabalhadora. Na prática, este controle e comando pode dar-se de duas formas. De forma direta, sendo por isso chamada de democracia direta, ou de forma indireta, quando é chamada de democracia indireta ou representativa. A democracia indireta ou representativa impõe-se como o modo ordinário ou normal de funcionamento do regime democrático, pela razão evidente de que numa sociedade de massas é impossível que todos os cidadãos participem diretamente de todos os processos decisórios do Estado. A eleição de representantes pelos cidadãos lhes garante, em tese, na maior parte dos casos, uma participação indireta. Apenas ocasionalmente os cidadãos são chamados a manifestar-se diretamente, em plebiscitos e referendos, sobre decisões de maior importância, exercendo neste caso a democracia direta. A democracia direta é, portanto, o modo extraordinário ou excepcional de funcionamento do regime democrático.

Oligarquia ou plutocracia é o regime político em que os processos decisórios do Estado são controlados e comandados pela minoria rica da sociedade, constituída pela burguesia, com resultados sempre correspondentes aos seus interesses e à sua vontade. A palavra oligarquia quer dizer "governo de poucos", enquanto plutocracia significa "governo dos ricos". E como invariavelmente são ricos os poucos que governam, pode-se dizer sem errar que toda oligarquia é uma plutocracia. A oligarquia ou plutocracia é o regime político vigente em toda e qualquer sociedade capitalista. Não existe capitalismo democrático, não existe burguesia democrata. Toda burguesia é essencialmente oligarca ou plutocrata. Uma burguesia democrata seria uma classe dominante suicida, já que abriria mão em favor dos trabalhadores do principal instrumento de poder usado para exercer sua dominação sobre eles, que é exatamente o Estado. Um sistema econômico e social baseado na exploração do trabalho da maioria pela minoria não sobreviveria se a maioria explorada assumisse efetivo controle e comando dos processos decisórios do Estado. A plutocracia ou oligarquia burguesa é no capitalismo, portanto, o verdadeiro oposto da democracia e não a ditadura, como se costuma dizer.

Regime constitucional é o regime político em que o Estado atua conforme as normas de uma constituição que limita o seu poder, estabelecendo como direitos fundamentais e inalienáveis de todo cidadão um conjunto de garantias e liberdades. O regime constitucional é o "governo das leis" em oposição ao "governo dos homens", que reconhece e garante os direitos fundamentais do cidadão e o protege dos abusos do Estado.

Estado de direito é o modo normal e ideal de operação do regime constitucional, em tempos de paz e ausência de instabilidades sociais e políticas de maior gravidade. É, indiscutivelmente, um atributo importante do regime político democrático. Mas não é a sua essência. A essência da democracia, como já dito, é o controle e comando da administração do Estado pela classe trabalhadora. Isto significa que onde há estado de direito não há, necessariamente, estado democrático. São coisas distintas e uma não garante a outra. Se assim não fosse, aliás, não haveria porque falar-se em estado democrático de direito, este conceito seria uma redundância.

Estado democrático de direito é o regime político em que a atuação do Estado é regida por uma constituição e por leis – o que caracteriza um estado de direito – concebidas pelo povo, através dos seus representantes – o que caracteriza um estado democrático.

Estado de exceção é o modo excepcional de operação do regime constitucional, caracterizado pela suspensão - declarada ou não declarada, prevista ou não em norma constitucional, regulada ou não por lei ordinária - do estado de direito, isto é, da vigência plena da regra definidora do regime constitucional, que é o cumprimento integral das leis e da constituição do país pelo Estado, sobretudo no que tange às garantias e liberdades fundamentais dos cidadãos, em razão de crise grave que comprometa fortemente a ordem e a segurança públicas e que represente ameaça inequívoca à integridade e à soberania do Estado sobre o seu território, como nas situações de guerra ou de convulsões sociais. O estado de exceção é a ausência ou o oposto do estado de direito. Nele a autoridade do governante ou do agente estatal sobrepõe-se à autoridade da constituição, em certos casos com o consentimento da própria constituição, para defendê-la, razão pela qual já foi chamado por alguns teóricos de ditadura constitucional. No estado de exceção amplia-se o poder do governante sobre os governados mediante a supressão parcial ou total das liberdades e garantias que as leis e a Constituição lhes asseguram. É o "governo dos homens" em oposição ao "governo das leis", o poder ilimitado do Estado sobre os cidadãos destituídos de direitos. O estado de exceção torna a circunstância vivida e determinados eventos, condutas, pessoas, organizações ou grupos sociais exceções às regras estabelecidas no ordenamento jurídico de um país. Isto significa que na sua vigência, um determinado conjunto de leis e normas constitucionais continua válido para todas as circunstâncias, eventos, condutas, pessoas, organizações e grupos sociais exceto para aquelas circunstâncias, eventos, condutas, pessoas, organizações e grupos sociais definidos pelo Estado como alvos. Significa que, na sua vigência, têm seus direitos respeitados todos os cidadãos exceto os considerados inimigos pelo Estado ou, mais exatamente, por aqueles que sobre o Estado exercem comando. O estado de exceção é, portanto, na prática um estado de guerra contra um inimigo interno, que é destituído dos seus direitos para mais facilmente ser subjugado e ou aniquilado pelo Estado.

Ditadura é o estado de exceção que tem por objetivo primordial derrotar, aniquilar e inviabilizar a oposição política, constituindo uma estratégia antes de defesa do governo do que de defesa do Estado.

Democracia burguesa é o nome, a meu ver, impróprio com que os socialistas têm designado uma forma dissimulada de plutocracia, que consente a oposição política enquanto ela não ameace à sua integridade, mas mantém um estado de exceção permanente contra a maioria social pobre, formada pela classe trabalhadora. Quando este estado de exceção se amplia para abarcar também a oposição política, a plutocracia altera o modo de se impor, deixando de ser democracia burguesa para tornar-se uma ditadura. Mas digo que é impróprio chamar de democracia burguesa a este regime porque ele tem todas as características de uma oligarquia, de democracia não tem nada. E nem poderia ter, porque o capitalismo é um sistema baseado na exploração do trabalho da maioria pela minoria e a maioria certamente não é explorada porque quer e decide livre e conscientemente sê-lo, a exploração é-lhe na verdade imposta. A democracia burguesa é um regime em que os processos decisórios fundamentais do Estado são inteiramente controlados pela minoria rica da sociedade, constituída pela burguesia, através do comando, mediante corrupção e coação, dos mandatos dos representantes eleitos pela maioria pobre,  trabalhadora, para os governos e parlamentos. A democracia burguesa é um regime em que a burguesia faz prevalecer os seus interesses e impõe a sua vontade nos processos decisórios do Estado não pela força, como faz nas ditaduras, mas pelo ardil, pela trapaça, mentindo para o povo e comprando a colaboração dos políticos, partidos, governos e parlamentos. A democracia burguesa é, na verdade, uma plutocracia disfarçada de democracia, que pretende dar ao povo a ilusão de ser partícipe dos processos decisórios do Estado. É uma democracia de fachada, uma falsa democracia, um regime verdadeiramente impostor e altamente traiçoeiro, porque guarda no seu íntimo a firme e permanente disposição para tornar-se francamente autoritário, quando a corrupção e a propaganda perdem eficácia como meios de controle e comando do Estado e de dominação da mente das massas. É em situações assim que a burguesia fomenta os movimentos fascistas e promove os seus golpes de Estado.

Fascismo é a ditadura da burguesia e o movimento, estimulado e financiado pela burguesia, que estabelece e sustenta este regime. O movimento fascista é a mobilização da classe média de direita para desencorajar ou derrotar e inviabilizar as mobilizações dos trabalhadores, subjugando ou destruindo, por meio de violência e terror, as suas organizações de representação e de luta social e política. Todo movimento fascista origina-se e alimenta-se do medo que a classe média tem da ascensão política da classe trabalhadora, vista como ameaça ao patrimônio, prestígio e poder por ela conquistados sob a ordem capitalista. Do medo de possíveis perdas nasce o ódio ao sujeito da ameaça, por instinto de defesa. E é a este medo e a este ódio instintivos que a burguesia estimula e manipula quando o regime de democracia burguesa perde eficácia como meio para alcançar os seus desígnios. Se a trapaça já não basta, não hesita a burguesia em assaltar o povo à mão armada. Sob o efeito das induções recebidas, a classe média se divide. Enquanto a esquerda, esta sim, hesita, vacilante, sopesando riscos, com a consciência tomada pelo conflito entre a generosidade do ideal igualitário e a mesquinhez do apego aos privilégios desfrutados, a direita se arma, resoluta, para o combate sob o comando da plutocracia. A classe média de direita é a vanguarda e a base militante de qualquer movimento fascista

Golpe de Estado é a tomada do comando do Estado por setores do próprio Estado através de meios não previstos na constituição do país. É, portanto, uma ruptura do estado de direito, que quase sempre dá origem a um regime autoritário, a uma ditadura.

Silvio Melgarejo

10/09/2018

(revisado em 24/02/2019)
(revisado em 06/09/2021)

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