segunda-feira, 10 de setembro de 2018

O que é espontaneísmo.

Espontaneísmo é uma palavra do vocabulário leninista que não se acha no principal dicionário de português brasileiro, o dicionário Aurélio. Esta palavra surge no contexto da produção teórica de autores políticos para designar uma tendência de pensamento identificada no movimento socialista, mas que pode expressar-se também em outros contextos. Lenin chamava esta tendência de "culto do espontâneo". Como vejo o espontaneísmo muito presente no PT e como o considero um fator determinante do comportamento dos dirigentes do partido, que é por sua vez determinante do funcionamento do partido como organização. penso que é preciso defini-lo com o máximo de exatidão e refletir sobre ele, do qual tão pouco se fala nos debates entre militantes. É o que me proponho fazer neste meu texto.

Conceito geral


Defino espontaneísmo como a crença na possibilidade da realização espontânea de algo ou a crença na espontaneidade como virtude em qualquer contexto ou circunstância. Espontâneo, segundo o Aurélio, é todo ato ou efeito originado em sentimento ou tendência natural, em determinação livre, sem constrangimento; todo ato que se manifesta como que por instinto, sem premeditação ou desvios. Digo eu, por dedução, que o que não se faz ou não se realiza espontaneamente, se faz ou se realiza por indução ou imposição de outrem, respondendo a estímulos ou obedecendo a exigências de um agente exterior. Espontâneo, portanto, é o não provocado, o não sugerido, o não ensinado, o não estimulado, o não planejado e o que não constitui dever. Por isso, o espontaneísmo, em qualquer contexto e em qualquer circunstância, predispõe quem dele padece a uma atitude de desprezo ou aversão pela teoria, pelo método, pelo planejamento e sobretudo pela responsabilização e disciplina, que são respectivamente a definição e o cumprimento de deveres.

Diferença entre espontâneo e voluntário


É importante não confundir espontâneo com voluntário. Embora os dicionários ainda registrem estas palavras como sinônimos, significando ato derivado da vontade própria do agente, os estudiosos do direito, que precisam de definições mais exatas para tipificar as condutas a serem julgadas, as distinguem definindo voluntário como o ato induzido e espontâneo como o ato não induzido; o ato espontâneo como o resultante de iniciativa própria e o ato voluntário como o que responde ou atende ao convite, sugestão, exortação ou convocação de outrem.

No artigo intitulado "Colaboração premiada: Ato 'espontâneo' ou 'voluntário' do colaborador?", publicado no site Âmbito Jurídico [http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=4620], o professor de Direito Penal e Processo Penal, Danilo Andreato ensina que:
"A despeito da apontada sinonímia, 'voluntário', em certa medida, difere de 'espontâneo'.

Espontâneo é o ato cuja motivação é interna ao agente, isto é, não há estímulo nem sugestão externa, mas a vontade decorrente de fatores intrínsecos àquele que age desse modo. Já voluntário, por sua vez, é o ato possivelmente (mas não necessariamente) derivado de provocação, estímulo, sugestão; enfim, de fator externo a deflagrar a vontade do agente.

Na parte que lhe coube redigir, Luiz Flávio Gomes, em obra conjunta com Raúl Cervini e William Terra de Oliveira, também diferencia 'voluntário' de 'espontâneo'. Segundo o autor, 'colaboração espontânea é a que parte da iniciativa do próprio infrator. Ao exigir a lei que seja "espontânea", faz depender que a ideia de colaborar provenha dele mesmo'. Sob essa perspectiva, há um algo mais exigido pela lei, porquanto 'não basta que a colaboração seja "voluntária" (ato livre) – requer-se um plus, que é a espontaneidade'.

Ao analisar o (revogado) texto do artigo 32, § 2.º, da Lei 10.409/2002, Paulo Rangel também operou a mesma distinção: 'o ato [de colaboração] é espontâneo e não voluntário, ou seja, deve ser praticado por livre decisão do acusado, independentemente de qualquer fator externo impulsionando-o para tal'.

(...)

Seria mais adequada a dicção legal 'voluntário', no sentido de vontade livre, facultativa e intencional, 'isenta de imposição, de constrangimento ou de coação', pouco interessando se essa voluntariedade foi espontânea (brotada do íntimo do colaborador) ou estimulada (derivada de proposta de acordo de colaboração por parte do membro do Ministério Público, por exemplo). Importa é que seja vontade livre e consciente, marcada pela facultatividade, sem a interferência de qualquer tipo de coação, manifestada espontaneamente ou não."

Fica então bastante claro que, para estes juristas, voluntário é todo ato deliberado induzido ou não e espontâneo é todo ato deliberado não induzido. O que significa dizer que voluntário é todo ato deliberado espontâneo ou não. O espontâneo é portanto, uma das formas de manifestação do voluntário. De modo que, para evitar confusão, me parece mais adequado restringir o significado de voluntário, designando-o apenas como ato deliberado induzido, já que a indução ou não se afigura como o fator distintivo entre os dois conceitos. O ato deliberado induzido é voluntário. O ato deliberado não induzido é espontâneo.

Espontaneísmo político


O espontaneísmo no partido socialista é a crença na politização espontânea das massas – massas inclusive do próprio partido – até o nível da consciência socialista. É a crença de que as condições materiais de existência no capitalismo e as experiências recorrentes de choques com a burguesia por reivindicações econômicas, como salário e melhores condições de trabalho e de vida, de que estas vivências, por si sós, conduzirão as massas, inexoravelmente, ao que Lenin definiu como a "consciência da oposição irredutível de seus interesses com toda a ordem política e social existente", ao despertar, portanto, da consciência de classe e sobretudo da necessidade de lutar contra o capitalismo e pelo socialismo. Esta superestimação da luta econômica como fator determinante da conscientização política dos trabalhadores ganhou desde muito cedo o nome de economismo ou economicismo.

O dirigente ou o militante padecente do espontaneísmo, chamado por Lenin de "culto do espontâneo", acredita equivocadamente que, para manter o respeito à autonomia dos movimentos sociais e à liberdade de pensamento e ação dos seus filiados, o partido deve esperar passivamente o despertar e desenvolvimento espontâneo das suas consciências socialistas, sem tentar provocar este despertar através da indução neste sentido das suas reflexões sobre a realidade e sobre as experiências por eles vividas. Ora, se é fato realmente inconteste, como já alertava o próprio Lenin, que a ideologia burguesa, através dos seus múltiplos meios de difusão, escraviza de modo implacável a mente das massas, a subordinação do movimento socialista à espontaneidade do pensamento e do movimento das massas constitui, na prática, uma renúncia à ideologia socialista e uma reprodução integral da ideologia burguesa, que sustenta o capitalismo. É, portanto, na prática, um abandono inequívoco da luta pelo socialismo.

O partido, o dirigente ou o militante padecentes do espontaneísmo não enxergam a necessidade do combate incessante à ideologia burguesa, através da difusão massificada e permanente de uma teoria que à ideologia burguesa se contraponha, explicando as condições materiais de existência dos trabalhadores e a própria experiência deles na luta com seus patrões sob a ótica do socialismo. Quem padece do espontaneísmo ignora, portanto, a necessidade do trabalho de propaganda e educação políticas como fatores determinantes do desenvolvimento da consciência anticapitalista e socialista, e acomoda-se numa expectativa paralisante por algo que, na verdade, é impossível, não tem a menor possibilidade de se realizar, já que a reflexão sobre a luta de classes, orientada pelas premissas e pressupostos da ideologia burguesa dominante, não permitirá jamais que os trabalhadores cheguem à conclusão de que devem lutar pelo socialismo, e sim, quando muito, de que devem lutar por um capitalismo melhor.

Lenin já dizia que "a história de todos os países atesta que, pelas próprias forças, a classe operária não pode chegar senão à consciência sindical, isto é, à convicção de que é preciso unir-se em sindicatos, conduzir a luta contra os patrões, exigir do governo essas ou aquelas leis necessárias aos operários etc.". E ia mais além disso, dizendo que "não é necessário refletir muito para compreender a razão por que todo culto da espontaneidade do movimento de massa, todo rebaixamento da política social-democrata [política socialista] ao nível da política sindical resume-se exatamente em preparar o terreno para fazer do movimento operário um instrumento da democracia burguesa". "O movimento operário espontâneo, por si mesmo", diz Lenin, "só pode engendrar (e infalivelmente o fará) o sindicalismo". "Ora", diz ele, " a política sindical da classe operária é precisamente a política burguesa da classe operária". E conclui: "A participação da classe operária na luta política, e mesmo na revolução política, não faz de maneira alguma de sua política uma política social-democrata [política socialista]".

Concordo com Lenin. Penso que, orientada pela ideologia burguesa, a reflexão dos trabalhadores sobre as suas condições materiais de existência e sobre as suas lutas econômicas com os patrões não poderá elevar mesmo as suas consciências políticas para além da consciência meramente sindical. E o sindicalismo, penso eu, nada mais é do que o tensionamento ocasional e controlado, para nunca chegar a um ponto de ruptura, da relação de interdependência funcional entre os trabalhadores e seus patrões, no âmbito do sistema de produção de uma empresa ou no âmbito do sistema de produção de um ramo de negócios do capitalismo. É dos problemas e conflitos vividos neste universo tão restrito, muito menor e muito menos complexo do que o universo da sociedade, que se ocupam as mentes dos trabalhadores no exercício do sindicalismo. Não é atoa que toda luta sindical termina em acordo. É que o objetivo do sindicalismo não é mesmo contestar o poder do patrão e sim obter o melhor acordo possível com ele, sobre questões muito específicas, como salário e condições de trabalho. Por isso, nenhuma luta sindical poderá induzir, por si só, ao despertar da consciência de classe dos trabalhadores e ao despertar das suas consciências anticapitalista e socialista. Porque nenhuma luta sindical, por si só, torna visíveis e compreensíveis para os trabalhadores as relações entre as classes na sociedade e a relação destas classes sociais com o Estado. Sobretudo, porque a ideologia burguesa, quando não dissimula, naturaliza e até justifica e legitima estas relações, naturaliza, justifica e legitima a dominação burguesa, a exploração do trabalho, os privilégios da burguesia e a privação de direitos dos trabalhadores, enquanto deslegitima e condena aprioristicamente qualquer proposta de superação desta ordem tão injusta.

A direção partidária padecente do espontaneísmo, a despeito disso, acredita que a vivência por si só da luta econômica resultará naturalmente num despertar da consciência socialista e que o partido socialista será mais útil à luta pelo socialismo se for um seguidor do movimento espontâneo das massas, representando-as nos parlamentos burgueses, do que se for dirigente das massas, apontando-lhes um novo horizonte e um novo caminho, diferente daquele que as massas conseguem enxergar, que são o caminho da revolução e o horizonte do socialismo. E isto acaba se refletindo diretamente na forma como o partido se organiza e funciona. Porque é o tipo de tarefa que o partido se propõe realizar que determina como ele deve se organizar e funcionar. Um partido que se propõe dirigir, ou seja, influenciar o comportamento de dezenas de milhões de trabalhadores, deve ser, necessariamente, uma organização militante cujos membros atuem de forma unificada. Porque é a unidade que dá potência à ação coletiva e determina o seu alcance e eficácia. Partido militante é o que tem atividade permanente e com grande envolvimento dos seus membros.

A capacidade de atuar coletivamente de forma unificada estará sempre condicionada à existência de uma forte consciência coletiva da necessidade da organização, da disciplina e da obediência a um comando centralizado na realização de qualquer ação planejada. E esta é uma cultura que só poderá ser desenvolvida no partido por uma ação firme e permanente dos seus dirigentes. Mas, se a direção partidária opta por impor ao partido o papel de seguidor do movimento espontâneo das massas, se opta por impor ao partido uma atitude de recusa ao papel de dirigente político das massas, restringindo a sua atuação apenas ao âmbito eleitoral e das instituições do Estado burguês, esta consciência a que acabo de me referir torna-se desnecessária, porque torna-se desnecessário que o partido seja militante e que os seus filiados atuem de forma unificada, sob um comando único centralizado. E é assim que o espontaneísmo político dos dirigentes partidários acaba instalando num partido socialista a indisciplina da sua cadeia de comado, a precarização do funcionamento das suas instâncias dirigentes e a completa desorganização e desmobilização da sua base de filiados.

Mas, efeito exatamente igual a este tem-se no partido socialista quando a direção partidária é contaminada por uma outra forma de espontaneísmo, o espontaneísmo administrativo, que pode acontecer mesmo na ausência do espontaneísmo político. É dele que tratamos a seguir.

Espontaneísmo administrativo


Espontaneísmo não é só a crença na possibilidade da politização espontânea até o nível da consciência anticapitalista e socialista. Espontaneísmo é também a crença na possibilidade da organização e mobilização espontânea das massas trabalhadoras e da própria base de filiados do partido socialista. É um espontaneísmo administrativo. Como eu já disse neste artigo, um partido que se propõe dirigir, ou seja, influenciar o comportamento de dezenas de milhões de trabalhadores, deve ser, necessariamente, uma organização militante cujos membros atuem de forma unificada, porque é a unidade que dá potência à ação coletiva e determina o seu alcance e eficácia. E, como também já foi dito, a capacidade de atuar coletivamente de forma unificada estará sempre condicionada à existência de uma forte consciência coletiva da necessidade da organização, da disciplina e da obediência a um comando centralizado na realização de qualquer ação planejada.

Pois o espontaneísmo administrativo levará os dirigentes partidários a acreditar que esta consciência – que é uma consciência administrativa, já que diz respeito ao trato dos meios e não dos fins do partido, determinados pela política –, que esta consciência também poderá despertar e desenvolver-se na base do partido espontaneamente e que a própria cadeia de comando do partido poderá funcionar espontaneamente, sem a necessidade de mecanismos de controle que assegurem a disciplina, ou seja, o cumprimento dos deveres dos filiados responsáveis pela gestão das instâncias diretivas. O efeito desta crença equivocada dos dirigentes é o mesmo produzido pelo espontaneísmo político, decorrente do economismo ou economicismo: indisciplina da cadeia de comado do partido, mal funcionamento das suas instâncias dirigentes e uma completa desorganização e desmobilização da sua base de filiados. Um partido nunca poderá ser militante se não forem militantes os seus dirigentes, e militantes altamente abnegados e disciplinados. Isto porque não existe organização espontânea. A organização é sempre induzida. Por isso, num partido militante, induzir os filiados a se organizarem é a mais importante obrigação dos dirigentes.

Todo processo organizativo é uma relação entre dois elementos: o agente organizador e os objetos a serem organizados, que são os recursos da organização. Organizar é definir a forma como devem ser distribuídos os recursos de uma organização para a realização de uma ação planejada. Os mais importantes recursos de qualquer organização são os recursos humanos, que são as pessoas, os membros da organização. Organizar pessoas é definir quem faz o que, onde, quando, como e com que meios em uma ação planejada. Esta definição depende, em primeiro lugar, da vontade e iniciativa do agente organizador e, em segundo lugar, do consentimento dos que vão ser organizados. Este consentimento pressupõe o reconhecimento de algum grau de autoridade – política, administrativa, técnica ou moral – do organizador pelos que serão organizados. Do reconhecimento da autoridade do organizador decorre o reconhecimento da sua legitimidade para emitir instruções aos membros da organização e a admissão de que a obediência a estas instruções constitui um justo dever a ser cumprido. A legitimidade para liderar o processo organizativo estende-se naturalmente aos processos de execução da ação planejada e de controle da qualidade da sua realização e dos resultados alcançados. De modo que, conforme a distinção citada neste artigo entre espontâneo e voluntário, nos processos organizativos, só a iniciativa do organizador é espontânea, o consentimento e obediência dos organizados serão sempre voluntários.

O cumprimento do que constitui dever chama-se disciplina. Não existe disciplina coletiva espontânea. Qualquer organização, independentemente dos fins a que se destine, sejam fins militares, eclesiásticos, filantrópicos, esportivos, empresariais ou políticos; qualquer organização, mesmo um partido político, que abdique ou renuncie ao comando e controle das ações dos seus membros, acreditando que eles espontaneamente atuarão como a organização precisa que eles atuem, terá o seu funcionamento inteiramente comprometido e não poderá jamais alcançar os objetivos que justificam a sua existência.

Conclusão 


A diferença entre o espontaneísmo político e o espontaneísmo administrativo é que o espontaneísmo político é a crença na possibilidade do despertar espontâneo da consciência política, enquanto o espontaneísmo administrativo é a crença na possibilidade da organização e mobilização espontâneas de qualquer conjunto de pessoas. O efeito prático destas duas crenças, quando elas predominam na cultura de um partido, é que o espontaneísmo político torna desnecessário que o partido seja militante, o que por sua vez torna desnecessário que o partido tenha comando firme e disciplina; enquanto o espontaneísmo administrativo torna simplesmente impossível que o partido seja militante, mesmo que sinceramente o queiram os seus membros dirigentes e de base.

Não existe mobilização social espontânea. Toda mobilização social surge da iniciativa de alguém e este alguém que propõe e toma a iniciativa da ação coletiva é o que se chama de líder. O líder, que pode ser uma pessoa ou uma organização, é quem agita as massas e as induz a sair do imobilismo. Sem agitação política, não há mobilização social, por mais insatisfeita que esteja uma sociedade com o seu governo. E é exatamente isto que estamos vendo ocorrer no Brasil desde o golpe de 2016. Há muito tempo já é imensa a insatisfação dos trabalhadores e no entanto nada acontece. E não acontece exatamente porque não há liderança para a luta. É preciso que se entenda que toda essa insatisfação represada só poderá dar origem a uma ação coletiva massiva de contestação ao governo, ao regime e ao sistema, se os trabalhadores encontrarem uma liderança em quem confiem, que expresse a sua revolta e lhes convoque insistentemente a lutar. Sem agitação política intensa e sistemática e sem uma liderança política que atue como agente indutor da organização e mobilização social, os trabalhadores, como classe, não conseguirão jamais reagir com eficácia à crescente e desumana opressão que vem sofrendo. Os trabalhadores brasileiros hoje precisam mais do que um candidato a presidente e uma legenda eleitoral e parlamentar, precisam de um líder e de um partido militante que organizem e conduzam a sua luta. É disso que devem conscientizar-se Lula e os dirigentes nacionais do Partido dos Trabalhadores.

Silvio Melgarejo

10/09/2018

(Revisado em 01/02/2019)

O que é esquerda e direita.

Esquerda e direita são metáforas espaciais que designam, no universo das disputas políticas, os dois campos antagônicos em que se dividem os cidadãos, de acordo com o juízo positivo ou negativo que façam das relações de opressão existentes na sociedade - situações em que o mais forte subjuga e impõe sofrimento e prejuízo ao mais fraco - e do ideal da igualdade em dignidade e direitos entre pessoas ou entre grupos sociais com diferentes perfis e diferentes condições de existência.


No Brasil, esta polarização manifesta-se claramente frente a quatro relações sociais de opressão. A opressão de classe, dos trabalhadores pela burguesia, chamada capitalismo; a opressão de raça, dos negros pelos brancos, chamada racismo; a opressão de gênero, das mulheres pelos homens, chamada machismo; e a opressão por orientação sexual, dos homossexuais pelos heterossexuais, chamada homofobia.

Frente a cada uma destas relações posiciona-se uma esquerda, que quer igualdade para por fim à opressão que abomina, e uma direita, que à igualdade se opõe porque à opressão naturaliza e aprova.

Há, portanto, na sociedade uma esquerda e uma direta frente à opressão entre as classes; uma esquerda e uma direita frente à opressão entre as raças; há uma esquerda e uma direta frente à opressão entre os gêneros; e há uma esquerda e uma direta frente à opressão entre as orientações sexuais.

Ocorre que um mesmo indivíduo pode ser - e muito frequentemente é - de esquerda quanto a uma determinada relação de opressão e de direita quanto a uma outra relação de opressão. Pode ser, por exemplo, um socialista e ao mesmo tempo machista, antirracista e ao mesmo tempo homofóbico ou pode defender o capitalismo e ser ao mesmo tempo contra o racismo, contra o machismo e contra a homofobia.

Todas as combinações são passíveis de se manifestarem numa mesma pessoa e cada pessoa estabelece a sua própria hierarquia dos temas que entende serem mais relevantes e, portanto, merecedores de uma atenção e uma dedicação maiores.

Ou seja, cada pessoa forma o seu próprio juízo negativo ou positivo de cada relação social de opressão em particular e ao mesmo tempo atribui a cada uma delas um grau de importância que determina a posição que terá no rol das suas preocupações e a prioridade maior ou menor que terá na sua reflexão e na sua atividade política.

Disso decorre a divergência - que algum debate provoca nas hostes da esquerda - entre os que privilegiam a luta de classes e a tem como eixo fundamental das suas atuações políticas e os que privilegiam as chamadas "pautas identitárias" - outrora chamadas lutas de minorias: raça, gênero e orientação sexual - e fazem de alguma ou algumas delas eixos fundamentais das suas militâncias.

Silvio Melgarejo

10/09/2018

Alguns conceitos políticos básicos.

Na introdução do seu Dicionário de Política, diz Norberto Bobbio que "a linguagem política é notoriamente ambígua", que "a maior parte dos termos usados no discurso político tem significados diversos", que "nenhum termo da linguagem política é ideologicamente neutro" e que "cada um deles pode ser usado com base na orientação política do usuário". Esta imprecisão de significados que caracteriza o vocabulário político é, indiscutivelmente, a maior fonte que existe de confusões e mal-entendidos nos diálogos e debates públicos, onde o que mais se vê são interlocutores, leitores e plateias atribuindo às palavras que ouvem ou leem significados diferentes dos atribuídos por aqueles que as vocalizam ou publicam, alterando inteiramente o sentido das mensagens que eles pretendem transmitir. Por isso escrevo este artigo. Escrevo para dar publicidade aos significados que atribuo a alguns conceitos políticos básicos, que eu considero fundamentais para se descrever e explicar a política no Brasil de hoje. São definições curtas e simples, em alguns casos com breves comentários, para que as pessoas entendam o que realmente quero dizer quando uso estes termos.

"Uma definição", disse Aristóteles, "é uma frase que significa a essência de uma coisa". Pois o que me proponho é exatamente destacar, dentre os muitos atributos que possam fazer parte de cada conceito político, apenas aquele que, no meu entender, constitua a essência do objeto ou fenômeno a que ele se refere. Penso que a imprecisão do vocabulário político é uma consequência da excessiva elasticidade que se permite que os conceitos políticos tenham. Como qualquer coisa, material ou abstrata, o objeto ou fenômeno político pode ter realmente milhões de atributos. Mas a escolha do que deve ser considerado o atributo essencial é uma escolha exclusivamente política. Não pretendo aqui impor a simplificação forçada do que seja complexo. Quero apenas tornar claro o que vejo ser fonte de confusões e equívocos nas discussões políticas, lembrando acima de tudo que toda disputa política começa pela disputa no campo dos conceitos, na luta pela determinação dos significados que devem ser atribuídos pela sociedade às palavras usadas nas reflexões e nos discursos políticos.

Norberto Bobbio está coberto de razão quando afirma que "nenhum termo da linguagem política é ideologicamente neutro". Por isso, não pode a esquerda descuidar da definição clara e inequívoca e da afirmação permanente e peremptória dos seus próprios conceitos e ficar tão receptiva e permeável quanto às vezes se mostra aos conceitos da ideologia burguesa, apregoados pela direita. Porque se os conceitos são os instrumentos com que descrevemos e julgamos a realidade, usar inadvertidamente os conceitos da direita significa assumir na prática o ponto de vista da direita e reproduzir a sua narrativa da história. É este o risco que permanentemente corre uma esquerda espontaneísta, pouco afeita à reflexão e ao estudo e completamente avessa à teoria e à educação política, que são as únicas vacinas capazes de evitar a contaminação ideológica.

O que é política? O que é Estado, governo e partido político?  O que é regime político, democracia e oligarquia? O que é Estado de direito, ditadura e democracia burguesa? E o que é, afinal, golpe de Estado? É sobre estes conceitos que quero dar minha versão para, além de me fazer bem entendido, provocar entre os meus pares de militância de esquerda alguma reflexão e, quem sabe, algum debate. Mas, para fazê-lo, para explicar o significado que atribuo a cada um destes termos, considero necessário definir antes o que é liberdade e poder e o que é organização e administração.


I - Liberdade, poder e soberania


Liberdade é a capacidade de realização da própria vontade.

Poder é a capacidade de imposição da própria vontade a outrem.

Relação entre poder e liberdade - Submeter à própria vontade a vontade de alguém significa negar a liberdade deste alguém. Em qualquer sociedade, o poder de uns limitará sempre, em alguma medida, a liberdade dos outros. Quanto maior o poder de uma pessoa, maior a sua liberdade e menor a liberdade dos que a cercam. A medida da liberdade corresponderá sempre à medida do poder que se tenha. Mas a medida deste poder será sempre determinada pela medida do acesso que se tenha aos meios que lhe proporcionem. É por isso que, muito frequentemente, se chama de poder também ao meio que proporciona poder.

Soberania é domínio pleno, o poder total que se impõe sobre alguém ou sobre algo.


II - Organização e administração


Organização é uma unidade social deliberadamente constituída para usar os seus recursos na implementação de ações destinadas à realização de algum objetivo.

Administração é a ciência social que estuda as organizações e busca definir as práticas mais adequadas para que elas alcancem os seus objetivos. Administração é também o nome que se dá à mais importante concepção desta ciência social, que é o processo administrativo. O processo administrativo é um processo composto de quatro etapas, que são:
Planejamento - definição dos objetivos da organização e das ações necessárias para alcançá-los.

Organização - definição de quem faz o que, onde, quando e com que recursos nas ações planejadas.

Execução - comando ou liderança da realização das ações planejadas.

Controle - avaliação permanente da qualidade da execução das ações planejadas e dos seus resultados, com a possibilidade da recomendação de mudanças corretivas em qualquer uma das etapas anteriores. 

III - Conceitos políticos


Estado é a organização constituída para dar a quem o comande poder sobre a sociedade, ou seja, para dar a quem o comande a capacidade de limitar a liberdade da sociedade para lhe impor uma determinada ordem.

Governo é a imposição de uma determinada ordem à sociedade. É também o nome que se dá à parte do Estado responsável pela execução das ações estabelecidas com este fim.

Política, em sentido amplo, é a relação mútua entre o Estado e a sociedade. Em sentido mais estrito, política é a relação social de disputa pela prevalência da vontade de algum setor da sociedade nos processos decisórios que definem os objetivos do Estado – estes objetivos constituem a ordem que se pretende que o Estado imponha à sociedade –, as ações que o Estado deve realizar para alcançar estes objetivos – as ações de governo –, quem deve comandar a realização destas ações estabelecidas – quem deve constituir o governo, quem deve governar – e a forma como o Estado deve se organizar e funcionar para garantir que as ações definidas sejam efetivamente cumpridas. Política é, portanto, nesta acepção mais estrita, a disputa pelo comando da administração do Estado.

Partido político é a organização constituída para disputar o comando da administração do Estado.

Regime político é a forma assumida pelos processos decisórios do Estado e o modo como o Estado se relaciona com a sociedade em um determinado contexto histórico. É a forma de governo, o modo como o Estado define e impõe uma determinada ordem à sociedade. Consolidou-se ao longo da história como principal critério para a classificação dos regimes políticos o da quantidade de pessoas que participam das decisões que determinam as ações do Estado. O outro critério vem sendo o da obediência ou não destes processos decisórios e da implementação das resoluções tomadas a uma constituição que limite o poder do Estado, estabelecendo, como direitos dos cidadãos, um conjunto de garantias e liberdades fundamentais.

Poder político é a capacidade de impor a própria vontade ao Estado, tornando-o instrumento da imposição desta vontade ao restante da sociedade.

Democracia ou estado democrático é o regime político em que os processos decisórios do Estado são controlados e comandados pela maioria pobre da sociedade, constituída pela classe trabalhadora, com resultados sempre correspondentes aos seus interesses e à sua vontade. Democracia nada mais é, portanto, do que o controle e comando da administração do Estado pela classe trabalhadora. Na prática, este controle e comando pode dar-se de duas formas. De forma direta, sendo por isso chamada de democracia direta, ou de forma indireta, quando é chamada de democracia indireta ou representativa. A democracia indireta ou representativa impõe-se como o modo ordinário ou normal de funcionamento do regime democrático, pela razão evidente de que numa sociedade de massas é impossível que todos os cidadãos participem diretamente de todos os processos decisórios do Estado. A eleição de representantes pelos cidadãos lhes garante, em tese, na maior parte dos casos, uma participação indireta. Apenas ocasionalmente os cidadãos são chamados a manifestar-se diretamente, em plebiscitos e referendos, sobre decisões de maior importância, exercendo neste caso a democracia direta. A democracia direta é, portanto, o modo extraordinário ou excepcional de funcionamento do regime democrático.

Oligarquia ou plutocracia é o regime político em que os processos decisórios do Estado são controlados e comandados pela minoria rica da sociedade, constituída pela burguesia, com resultados sempre correspondentes aos seus interesses e à sua vontade. A palavra oligarquia quer dizer "governo de poucos", enquanto plutocracia significa "governo dos ricos". E como invariavelmente são ricos os poucos que governam, pode-se dizer sem errar que toda oligarquia é uma plutocracia. A oligarquia ou plutocracia é o regime político vigente em toda e qualquer sociedade capitalista. Não existe capitalismo democrático, não existe burguesia democrata. Toda burguesia é essencialmente oligarca ou plutocrata. Uma burguesia democrata seria uma classe dominante suicida, já que abriria mão em favor dos trabalhadores do principal instrumento de poder usado para exercer sua dominação sobre eles, que é exatamente o Estado. Um sistema econômico e social baseado na exploração do trabalho da maioria pela minoria não sobreviveria se a maioria explorada assumisse efetivo controle e comando dos processos decisórios do Estado. A plutocracia ou oligarquia burguesa é no capitalismo, portanto, o verdadeiro oposto da democracia e não a ditadura, como se costuma dizer.

Regime constitucional é o regime político em que o Estado atua conforme as normas de uma constituição que limita o seu poder, estabelecendo como direitos fundamentais e inalienáveis de todo cidadão um conjunto de garantias e liberdades. O regime constitucional é o "governo das leis" em oposição ao "governo dos homens", que reconhece e garante os direitos fundamentais do cidadão e o protege dos abusos do Estado.

Estado de direito é o modo normal e ideal de operação do regime constitucional, em tempos de paz e ausência de instabilidades sociais e políticas de maior gravidade. É, indiscutivelmente, um atributo importante do regime político democrático. Mas não é a sua essência. A essência da democracia, como já dito, é o controle e comando da administração do Estado pela classe trabalhadora. Isto significa que onde há estado de direito não há, necessariamente, estado democrático. São coisas distintas e uma não garante a outra. Se assim não fosse, aliás, não haveria porque falar-se em estado democrático de direito, este conceito seria uma redundância.

Estado democrático de direito é o regime político em que a atuação do Estado é regida por uma constituição e por leis – o que caracteriza um estado de direito – concebidas pelo povo, através dos seus representantes – o que caracteriza um estado democrático.

Estado de exceção é o modo excepcional de operação do regime constitucional, caracterizado pela suspensão - declarada ou não declarada, prevista ou não em norma constitucional, regulada ou não por lei ordinária - do estado de direito, isto é, da vigência plena da regra definidora do regime constitucional, que é o cumprimento integral das leis e da constituição do país pelo Estado, sobretudo no que tange às garantias e liberdades fundamentais dos cidadãos, em razão de crise grave que comprometa fortemente a ordem e a segurança públicas e que represente ameaça inequívoca à integridade e à soberania do Estado sobre o seu território, como nas situações de guerra ou de convulsões sociais. O estado de exceção é a ausência ou o oposto do estado de direito. Nele a autoridade do governante ou do agente estatal sobrepõe-se à autoridade da constituição, em certos casos com o consentimento da própria constituição, para defendê-la, razão pela qual já foi chamado por alguns teóricos de ditadura constitucional. No estado de exceção amplia-se o poder do governante sobre os governados mediante a supressão parcial ou total das liberdades e garantias que as leis e a Constituição lhes asseguram. É o "governo dos homens" em oposição ao "governo das leis", o poder ilimitado do Estado sobre os cidadãos destituídos de direitos. O estado de exceção torna a circunstância vivida e determinados eventos, condutas, pessoas, organizações ou grupos sociais exceções às regras estabelecidas no ordenamento jurídico de um país. Isto significa que na sua vigência, um determinado conjunto de leis e normas constitucionais continua válido para todas as circunstâncias, eventos, condutas, pessoas, organizações e grupos sociais exceto para aquelas circunstâncias, eventos, condutas, pessoas, organizações e grupos sociais definidos pelo Estado como alvos. Significa que, na sua vigência, têm seus direitos respeitados todos os cidadãos exceto os considerados inimigos pelo Estado ou, mais exatamente, por aqueles que sobre o Estado exercem comando. O estado de exceção é, portanto, na prática um estado de guerra contra um inimigo interno, que é destituído dos seus direitos para mais facilmente ser subjugado e ou aniquilado pelo Estado.

Ditadura é o estado de exceção que tem por objetivo primordial derrotar, aniquilar e inviabilizar a oposição política, constituindo uma estratégia antes de defesa do governo do que de defesa do Estado.

Democracia burguesa é o nome, a meu ver, impróprio com que os socialistas têm designado uma forma dissimulada de plutocracia, que consente a oposição política enquanto ela não ameace à sua integridade, mas mantém um estado de exceção permanente contra a maioria social pobre, formada pela classe trabalhadora. Quando este estado de exceção se amplia para abarcar também a oposição política, a plutocracia altera o modo de se impor, deixando de ser democracia burguesa para tornar-se uma ditadura. Mas digo que é impróprio chamar de democracia burguesa a este regime porque ele tem todas as características de uma oligarquia, de democracia não tem nada. E nem poderia ter, porque o capitalismo é um sistema baseado na exploração do trabalho da maioria pela minoria e a maioria certamente não é explorada porque quer e decide livre e conscientemente sê-lo, a exploração é-lhe na verdade imposta. A democracia burguesa é um regime em que os processos decisórios fundamentais do Estado são inteiramente controlados pela minoria rica da sociedade, constituída pela burguesia, através do comando, mediante corrupção e coação, dos mandatos dos representantes eleitos pela maioria pobre,  trabalhadora, para os governos e parlamentos. A democracia burguesa é um regime em que a burguesia faz prevalecer os seus interesses e impõe a sua vontade nos processos decisórios do Estado não pela força, como faz nas ditaduras, mas pelo ardil, pela trapaça, mentindo para o povo e comprando a colaboração dos políticos, partidos, governos e parlamentos. A democracia burguesa é, na verdade, uma plutocracia disfarçada de democracia, que pretende dar ao povo a ilusão de ser partícipe dos processos decisórios do Estado. É uma democracia de fachada, uma falsa democracia, um regime verdadeiramente impostor e altamente traiçoeiro, porque guarda no seu íntimo a firme e permanente disposição para tornar-se francamente autoritário, quando a corrupção e a propaganda perdem eficácia como meios de controle e comando do Estado e de dominação da mente das massas. É em situações assim que a burguesia fomenta os movimentos fascistas e promove os seus golpes de Estado.

Fascismo é a ditadura da burguesia e o movimento, estimulado e financiado pela burguesia, que estabelece e sustenta este regime. O movimento fascista é a mobilização da classe média de direita para desencorajar ou derrotar e inviabilizar as mobilizações dos trabalhadores, subjugando ou destruindo, por meio de violência e terror, as suas organizações de representação e de luta social e política. Todo movimento fascista origina-se e alimenta-se do medo que a classe média tem da ascensão política da classe trabalhadora, vista como ameaça ao patrimônio, prestígio e poder por ela conquistados sob a ordem capitalista. Do medo de possíveis perdas nasce o ódio ao sujeito da ameaça, por instinto de defesa. E é a este medo e a este ódio instintivos que a burguesia estimula e manipula quando o regime de democracia burguesa perde eficácia como meio para alcançar os seus desígnios. Se a trapaça já não basta, não hesita a burguesia em assaltar o povo à mão armada. Sob o efeito das induções recebidas, a classe média se divide. Enquanto a esquerda, esta sim, hesita, vacilante, sopesando riscos, com a consciência tomada pelo conflito entre a generosidade do ideal igualitário e a mesquinhez do apego aos privilégios desfrutados, a direita se arma, resoluta, para o combate sob o comando da plutocracia. A classe média de direita é a vanguarda e a base militante de qualquer movimento fascista

Golpe de Estado é a tomada do comando do Estado por setores do próprio Estado através de meios não previstos na constituição do país. É, portanto, uma ruptura do estado de direito, que quase sempre dá origem a um regime autoritário, a uma ditadura.

Silvio Melgarejo

10/09/2018

(revisado em 24/02/2019)
(revisado em 06/09/2021)