domingo, 4 de setembro de 2016

Moral da História: Não confie na burguesia, sua mídia, seus partidos e seu Estado.

Se as derrotas mais perturbadoras e dolorosas são as que nos pegam de surpresa, não se pode dizer que seja o caso da derrota que sofremos, com o golpe de Estado que acaba se dar no Brasil. Desde o 17 de abril, em que a Câmara aprovou a admissibilidade da abertura do processo de impeachment, sob o olhar absolutamente indiferente da imensa maioria dos trabalhadores, a deposição de Dilma já se afigurava como o resultado mais provável do julgamento que se daria. Não pegou de surpresa à esquerda, portanto. No fundo das nossas almas aflitas, por impotentes, todos sabíamos que assim terminaria. Não foi qual morte súbita, foi como a morte depois de uma doença prolongada. Por isso há dor, mas não perplexidade que nos paralise e é bom que não haja, porque as batalhas mais duras ainda estão por vir e não tardam a explodir na nossa porta.

Dói a derrota, dói demais, mesmo assim, mesmo não sendo surpresa. Mas é preciso lembrar que estamos numa guerra, que continua porque persistem as razões que lhe originam, que são as injustiças produzidas pelo capitalismo. Perdemos uma batalha importante, o inimigo nos tomou uma posição estratégica, a presidência da república, e não o fez senão para, a partir dela, desencadear uma violenta ofensiva, cujos objetivos já vem sendo anunciados desde 2015, quando foi lançado o programa “Uma ponte para o futuro”, pelo PMDB. A burguesia, que encomendou e patrocinou o golpe, tem pressa de ver este programa implementado. Por isso não há tempo a perder, é preciso avaliar rapidamente as razões do revés que sofremos, afim de iniciarmos de modo adequado os preparativos para o combate que em breve se fará necessário.

Se o resultado de qualquer disputa decorre da interação das forças antagonistas, à eficácia dos movimentos executados pela direita para realizar o golpe, corresponde diretamente a ineficácia dos movimentos executados pela esquerda para neutralizá-los. Nós perdemos a batalha do impeachment porque cometemos erros que nos fragilizaram imensamente perante a direita e possibilitaram o seu avanço e triunfo. E o maior de todos os erros, do qual decorre a maior parte dos outros, foi confiarmos de modo irrestrito na burguesia e nas instituições do Estado que ela controla. Por confiarmos, não nos armamos para a luta e, por desarmados, não pudemos reagir quando atacados. Faltou-nos um partido de massas militante e organizado, como aquele que o PT propôs-se a ser quando fundado, e faltou-nos uma mídia própria, de alcance nacional, para disputarmos a opinião pública com a direita e mobilizarmos os trabalhadores para o confronto com a burguesia.

Renunciamos à construção deste partido e à criação desta mídia porque fomos tomados pela ilusão de ser possível reformar o capitalismo e melhorar a vida do povo apenas através das disputas no campo institucional da política, regidas pelo ordenamento legal e constitucional do país. Pior: associamo-nos a partidos de direita, adotamos o modo burguês de fazer política e fizemos acordos econômicos que foram sempre muito mais vantajosos para os ricos do que para os pobres. Tudo na vã esperança de satisfazer ao mesmo tempo às expectativas de burgueses e trabalhadores sobre o nosso governo e evitar que eles entrassem em conflito entre si e conosco. Agimos como pelegos. Desprezamos a História, que ensina, através de mil exemplos, que a burguesia é por demais gananciosa e só respeita acordos, leis e constituições enquanto lhe convém. Traímos nossos mais caros princípios, renunciamos ao socialismo e à mobilização social como meio de transformação da sociedade, rebaixamos até não mais poder nosso programa de governo e nosso padrão de exigência ética, e acabamos traídos por aliados circunstanciais que sempre foram mercenários a serviço da burguesia, sem poder contar com a solidariedade dos trabalhadores, de quem, merecidamente, perdemos a confiança.

E se o golpe não foi surpresa, muito menos poderá sê-lo a rápida instalação no país de um regime autoritário. Porque, como venho alertando desde março, o programa de governo dos golpistas é simplesmente irrealizável num regime democrático, em razão das fortes reações que tende a provocar na sociedade, por seu conteúdo radicalmente antinacional e antipopular. Para que este programa seja implementado é preciso que as reações a ele sejam desencorajadas ou sufocadas. O governo Temer nasce com este propósito e já é, de fato, uma ditadura envergonhada, como foi, segundo o jornalista Elio Gaspari, a ditadura militar nos seus primeiros anos. Os militares e seus apoiadores civis chamavam o golpe de 64 de revolução democrática e sempre autodefiniram-se como defensores da democracia. Temer e os seus dizem já e dirão sempre exatamente o mesmo, enquanto preparam fuzis e porões para inibir ou esmagar a resistência realmente democrática e a reação cidadã ao roubo das riquezas do país e dos direitos dos trabalhadores.

A ilusão de um país capitalista sem luta de classes, alimentada por Lula, Dilma e a maioria dos dirigentes do PT durante 13 anos, desfaz-se agora, de forma trágica, sob a luz da realidade revelada pelo golpe e pela ditadura que o golpe origina. O golpe e a ditadura não são de Temer, Aécio, do PMDB ou dos tucanos. O golpe e a ditadura são da burguesia. Os políticos e partidos são meros agentes. A disputa política no Brasil não pode ser mais vista e tratada, portanto, como se fosse apenas uma briga entre partidos. Está mais claro do que nunca que é e sempre foi uma briga entre as  classes sociais, uma que oprime, outra que é vítima e resiste à opressão. A partir de agora, é sob esta perspectiva que deve ser encarada a luta política no Brasil. Tem que ser trabalhador contra burguês, sem arrego e sem trégua, nas urnas e nas ruas, nas cidades e no campo.

O PT, derrotado pela própria ilusão, continua sendo, não obstante, o único partido de massas da esquerda e, por isso mesmo, o partido que mais pode contribuir com a luta pela redemocratização do país. Desde, é claro, que saiba tirar da experiência vivida as devidas lições. E a mais importante lição que os petistas podem tirar dos 13 anos de governo do PT e do golpe de 2016 é que os trabalhadores não devem confiar jamais na burguesia, na mídia e nos partidos que a burguesia sustenta e nas instituições do Estado que a burguesia controla. Um novo PT precisa surgir a partir deste golpe e tem que ser um partido que assuma, pra valer e de uma vez por todas, o ideal socialista proclamado nas resoluções dos seus congressos e encontros nacionais, reassumindo definitivamente o seu compromisso histórico original de manter total independência política em relação à burguesia, para melhor combatê-la. Se a conciliação com a burguesia nos trouxe até onde estamos, com o Brasil governado por uma gangue, sob um regime autoritário, só a confrontação com a burguesia poderá restabelecer a democracia, ampliá-la e aprofundá-la, abrindo caminho para o início de um processo de transformações radicais na sociedade, a partir das demandas populares, que conduza o país ao socialismo. Confiar na burguesia, nunca mais! Esta é a firme decisão que devem tomar os petistas depois do golpe de 2016.

Mas houve um outro erro que a mim parece ter sido decisivo para a derrota da esquerda na batalha do impeachment, que foi o total desprezo pelas circunstâncias reais da disputa política na definição da sua estratégia de luta. Quando mais de 60% dos trabalhadores diziam em abril, através das pesquisas de opinião, que queriam a antecipação da eleição presidencial, porque não queriam nem Temer, nem Dilma no governo, estava mais do que claro que a antecipação da eleição era a única bandeira capaz de mobilizá-los. A maior parte da esquerda, no entanto, negou-se a empunhar esta bandeira, por medo de enfrentar uma eleição e ser derrotada e por medo de perder o discurso de denúncia do golpismo da direita. Assim, para evitar o confronto com a direita no campo de batalha que mais favorece à esquerda, que é o campo do debate público sobre programas de governo, exigido pelos trabalhadores nas campanhas eleitorais, e para não perder um discurso que pouco valor teve, tem e terá como fator de mobilização social, renunciamos ao uso da única estratégia capaz de evitar que o golpe se consumasse e a ditadura se instalasse. Pois o golpe se consumou, a ditadura se instalou e só agora aquela maioria da esquerda, PT à frente, resolve defender a antecipação da eleição presidencial.

Ontem foi divulgada uma pesquisa Ibope, dando conta de que 31% dos brasileiros consideram o governo Temer ruim ou péssimo e que 38% o consideram regular. Apenas 13% o consideram bom ou ótimo. Os 38% que avaliam o governo Temer como regular, expressam na verdade a esperança desta parcela da população de que o atual governo seja melhor do que o anterior. Apenas esperança, já que mal começou a experiência das massas com o governo Temer. Quando os efeitos das medidas que tem sido anunciadas chegarem no chão da sociedade é que haverá, com toda certeza, uma substancial transferência dos que consideram o governo regular para a coluna dos que consideram o governo ruim ou péssimo, nas pesquisas. Temer tende a ser realmente um presidente extremamente impopular. Mas não por ser golpista, porque para a imensa maioria dos trabalhadores, isto não faz a menor diferença. Ele será impopular porque seu governo é antipopular e notoriamente corrupto, por isso o povo já começa a rejeitá-lo. Verdade que o fato de ser golpista legitima a sua derrubada imediata, antes do pleito de 2018, perante os setores da sociedade, especialmente da classe media, que sabem o que é um golpe de Estado e que têm uma consciência democrática mais desenvolvida. Mas o que mobilizará as massas, mesmo, não será, como não tem sido até agora, a rejeição ao golpismo, e sim a rejeição à corrupção, ao entreguismo e, sobretudo, ao desemprego, arrocho salarial e corte de direitos que ainda estão por vir.

A estratégia de defesa do emprego, salário, direitos, da soberania nacional e da antecipação da eleição presidencial, que poderia ter evitado a consumação do golpe, é agora, sem dúvida nenhuma, o melhor caminho para a derrubada do governo Temer e restabelecimento da ordem constitucional no país. A esquerda finalmente começa a falar a língua do povo e sobre o que ao povo interessa. Unificada e unida ao centro democrático com uma estratégia de elevado potencial de mobilização social, faltam-lhe agora apenas os meios para realizar esta estratégia, que são um partido militante de massas e uma mídia própria de alcance nacional. Este partido e esta mídia precisam urgentemente ser construídos, porque, sem eles, nenhuma estratégia de luta é viável, por mais acertada e promissora que seja e por maior que seja o empenho e combatividade dos que se dedicarem à sua execução. Não basta estabelecer objetivos e ações para alcançá-los, é preciso dispor dos meios necessários para realizar estas ações. Senão o plano fica no papel ou, quando muito, será mal executado.

Silvio Melgarejo

04/09/2016

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.