Por Silvio Melgarejo - Socialismo é o sistema econômico-social que estabelece o mínimo de
concentração da riqueza, para que haja o máximo de igualdade na divisão da
riqueza.
Democracia é o regime político que estabelece o mínimo de concentração
do poder, para que haja o máximo de igualdade na divisão do poder.
Socialismo Democrático é o sistema politico-econômico-social que
estabelece o mínimo de concentração da riqueza, com o mínimo de concentração do
poder, para que haja o máximo de igualdade na divisão da riqueza, com o máximo
de igualdade na divisão do poder.
Há dois tipos de socialismo. O que é
imposto ao povo e o que é imposto pelo povo. Um é o socialismo autoritário, já
experimentado, que não deixou boas lembranças. O outro é o Socialismo
Democrático, que ainda está por vir, no qual depositam suas esperanças os que
têm a igualdade com liberdade como utopia. Eu sou um destes últimos e acredito
que o Cristianismo é o mais poderoso aliado desse generoso ideal de organização
social que é o Socialismo Democrático.
Quando falo em Cristianismo, não me
refiro, evidentemente, às grandes religiões institucionalizadas que se
reivindicam cristãs. Estas religiões não são e nunca foram fiéis ao
Cristianismo genuíno. Refiro-me, isto sim, à proposta ética enunciada pelo
próprio Jesus Cristo, conforme o relato dos evangelistas Mateus, Lucas e Marcos,
que transcrevo abaixo. Peço a atenção dos que me leem. O Cristianismo não é
uma igreja e não é uma religião; é uma proposta ética. É isso o que pretendo demonstrar a seguir.
Cristianismo segundo Jesus
Evangelho de Mateus, capítulo 22, versículos 34 a 40
"Sabendo os fariseus que Jesus reduzira
ao silêncio os saduceus, reuniram-se, e um deles, doutor da lei, fêz-lhe esta
pergunta para pô-lo à prova: '- Mestre, qual é o maior mandamento da lei?'
Respondeu Jesus: '- Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda tua
alma e de todo o teu espírito (Deutoronômio, capítulo 6, versículo 5). Este é o
maior e o primeiro mandamento. E o segundo , semelhante a este, é: Amarás teu
próximo como a ti mesmo (Levítico, capítulo 19, versículo 18). Nesses dois
mandamentos se resumem toda a lei e os profetas.'"
Evangelho de Mateus, capítulo 7, versículo 12 (Sermão da Montanha)
"Tudo o que quereis que os homens vos
façam, fazei-o vós a eles. Esta é a lei e os profetas."
Evangelho de Marcos, capítulo 12, versículos 28 a 31
"Achegou-se dele um dos escribas que os
ouvira discutir e, vendo que lhes respondera bem, indagou dele: '- Qual é o
primeiro de todos os mandamentos?' Jesus respondeu-lhe: '- O primeiro de todos
os mandamentos é este: Ouve, Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor;
amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o
teu espírito e de todas as tuas forças. Eis, aqui, o segundo: Amarás o teu
próximo como a ti mesmo.* Outro mandamento maior do que estes não
existe.'" * (Citação de Deutoronômio, capítulo 6,
versículos 4 e 5; e Levítico, capítulo 19, versículo 18)
Evangelho de Lucas, capítulo 10, versículos 25 a 37
"Levantou-se um doutor da lei e, para
pô-lo à prova, perguntou: '- Mestre, que devo fazer para possuir a vida
eterna?' Disse-lhe Jesus: '- Que está escrito na lei? Como é que lês?'
Respondeu ele: '- Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua
alma, de todas as tuas forças e de todo o teu pensamento (Deutoronômio,
capítulo 6, versículo 5); e a teu próximo como a ti mesmo (Levítico, capítulo
19, versículo 18).' Falou-lhe Jesus: '- Respondeste bem; faze isso, e
viverás.'"
Evangelho de Lucas, capítulo 6, versículo 31
"Tratai todos os homens como quereríeis
que eles vos tratassem."
Quem são os cristãos
Cristãos não são os que se dizem
cristãos. São os que lutam para atingir um ideal de conduta baseado no modelo
de Jesus Cristo; os que, imperfeitos, perseguem a perfeição, segundo esse modelo.
Cristãos são seres que vivem, diariamente, a tensão
entre o ideal e o possível, entre a aspiração pela transcendência e a miserável
condição humana. Não são anjos, não são os que não pecam. São os que, pecando, reconhecem seus erros e lutam consigo
mesmos para não reincidir. Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como
a si mesmo é a máxima que tomam por diretriz de suas vidas. O cristão é um
revolucionário, dentro de si mesmo, lutando sem descanso, na intimidade de seu
próprio ser, contra a tirania do orgulho e do egoísmo, que ainda lhe governam a
alma e que identifica como razões maiores de sua desdita. O cristão acredita que
a transformação do mundo começa com a transformação de si mesmo em algo próximo
do que espera de seus semelhantes. Suas lutas, suas vitórias e suas derrotas,
suas feridas abertas e suas cicatrizes, ninguém vê; ninguém senão ele mesmo
sabe da dor e do gozo experimentados nessas batalhas. O cristão é, como todo ser humano, um guerreiro solitário em seu mundo íntimo. A diferença é que ele tem a
seu favor a fé, que consola e encoraja, e a ética, que orienta e lhe aponta o
rumo certo.
Fé cristã e ética cristã
O Cristianismo tem duas dimensões que são
perfeitamente traduzidas pelos dois mandamentos citados por Jesus, como síntese
de sua doutrina, conforme relatam os evangelistas. O Cristianismo tem uma
dimensão religiosa e uma outra dimensão, que é a dimensão ética. Amar a Deus
sobre todas as coisas, é o fundamento da fé cristã. Amar ao próximo como a si
mesmo, é o fundamento da ética cristã. Não importa o que digam ou façam os que
se dizem seguidores de Jesus. Eles não têm mais autoridade do que o próprio
Cristo para dizer o que é o Cristianismo. E o que o Cristo disse foi que os
maiores mandamentos da Lei de Deus são amar a Deus sobre todas as coisas e amar
ao próximo como a si mesmo. Isso é o Cristianismo. O resto é o resto.
O indivíduo que ama ao seu semelhante realmente não
precisa da fé cristã para seguir a ética cristã. Só precisa ouvir à própria
consciência. Mas o indivíduo que ainda não sabe amar, precisa mesmo da fé
cristã para seguir a ética cristã. Nesse caso, mesmo sem saber amar, ele agirá
como se soubesse. Seus atos de amor não brotarão do amor genuíno pelo próximo,
mas da obediência à vontade de Deus. A fé cristã fortalece o homem para que ele resista
às dores da vida sem se curvar a elas. Já a ética cristã dá ao homem uma
diretriz segura de bem proceder, para bem viver consigo mesmo e com os outros
homens na sociedade. A ética e a fé cristãs não dependem, de fato, uma da
outra, mas, também, de fato, o que se observa é que alimentam-se mutuamente e se robustecem
quando presentes numa mesma pessoa.
O que é o Cristianismo
O Cristianismo é, portanto, o modelo de fé e de ética defendido por
Jesus. Esse modelo de fé e de ética nada têm a ver com a produção teológica e
com os atos condenáveis dos que O antecederam e O sucederam, apresentando-se
como emissários de Deus. Jesus ensinou que o maior mandamento de Deus, no que
se refere à relação do ser humano com seu semelhante, é que cada um ame a seu
próximo como a si mesmo. Disse que nenhum outro mandamento, exceto o que
recomenda o amor incondicional a Deus, é mais importante do que este. Amar
a Deus é fazer a Sua vontade. E a vontade de Deus, segundo Jesus, é que todo
indivíduo ame a seu próximo como a si mesmo. Portanto, este mandamento – amar
ao próximo como a si mesmo – é a síntese perfeita do Cristianismo,
apresentada por Aquele mesmo que todos os cristãos dizem ter como mestre.
Cristianismo e Socialismo Democrático
O Cristianismo nada mais é do que a ética da solidariedade por empatia, ensinada
por Jesus. Essa ética é a única capaz de servir de base cultural para a
construção de um Socialismo Democrático, que não precise valer-se da repressão
estatal às ambições de milhões de indivíduos egoístas, para promover e manter
a ordem social igualitária. O Socialismo Democrático é aquele em que a
igualdade não é imposta ao povo, e sim por ele desejada e buscada; é aquele em
que a ordem igualitária não é só a realização do projeto de um partido, mas a
realização da vontade soberana de um povo livre, inspirado pelo sentimento de
solidariedade.
A ética cristã não é realmente a melhor amiga das propostas
revolucionárias autoritárias, idealizadas por vanguardas descoladas do povo, decididas
a impor ao povo, pela força, o socialismo. Mas a ética cristã será a maior e a
melhor aliada da revolução socialista democrática, aquela que será feita pelas
próprias massas trabalhadoras, às quais há de servir de inspiração para a
construção do mundo novo, justo e fraterno, no qual poderá viver feliz e em paz
a humanidade.
O Reino dos Céus na Terra, cujo modo de ser construído foi ensinado por
Jesus, começa na alma dos homens e se estende ao ambiente em que eles vivem. O
homem capaz de amar a seu próximo como a si mesmo é naturalmente, mesmo que não saiba, um cidadão socialista, pronto para conviver feliz com os limites à
concentração da propriedade privada, próprios da ordem igualitária. Um povo de
egoístas jamais será feliz no socialismo. O egoísta pobre pode ser infeliz no
capitalismo, mas se consola com a promessa capitalista de que ele um dia pode vir
a ser rico. Essa promessa o socialismo não lhe faz, essa esperança o socialismo
não lhe dá.
O egoísta não acha injusta a exploração do homem pelo homem, nem a distribuição
desigual da riqueza; acha injusto, isto sim, que ele mesmo seja explorado e não
explorador, e que a riqueza esteja concentrada em outras mãos que não as suas.
Pouco lhe importa a condição miserável de milhões de semelhantes. Importa-lhe
salvar a própria pele e ascender socialmente tanto quanto lhe seja possível,
para gozar dos privilégios dos ricos, que não condena, antes inveja. Só à custa
de uma brutal repressão estatal o socialismo pode ser imposto a esse tipo de
gente que, a meu ver, continua a ser maioria na sociedade. E socialismo,
imposto à maioria, não é socialismo democrático, é ditadura.
Socialismo é igualdade na divisão da riqueza. Democracia é igualdade na
divisão do poder. Socialismo Democrático é a combinação desses dois conceitos,
sendo a igualdade na divisão do poder, a condição fundamental para a conquista
e manutenção da igualdade na divisão da riqueza. O Socialismo Democrático é
aquele que é construído pelo próprio povo, e não por alguém em seu nome e à sua
revelia.
Ética cristã e ética socialista
Todo sistema econômico se baseia em relações sociais regidas por algum
tipo de ética. A ética do capitalismo é a da desigualdade, da competição e da
indiferença pelo outro. A do socialismo é o inverso disso. A ética do socialismo é a ética da igualdade, da cooperação e
da solidariedade. Ora, não é essa a mesma proposta ética do Cristianismo? Amar
ao próximo como a si mesmo é querer o bem do outro em medida igual à que se
quer o próprio bem. E não é esta uma clara exortação a que se estabeleçam
relações sociais de cooperação e solidariedade para a promoção da igualdade entre
os indivíduos?
São Paulo não é a minha maior referência em se tratando de Cristianismo;
prefiro Jesus. Mas todas as religiões que se reivindicam cristãs o têm como
referência até maior do que o próprio Cristo. Vejam o que diz o Apóstolo dos Gentios, na
Segunda Epístola aos Coríntios, capítulo 8, versículos 12 a 15.
“Quando se dá de bom coração segundo as posses (evidentemente, não do
que não se tem), sempre se é bem recebido. Não se trata de aliviar os outros
fazendo-vos sofrer penúria, mas sim, que haja igualdade entre vós. Nas atuais
circunstâncias, vossa abundância supra a indigência daqueles, para que, a seu
turno, a abundância deles venha a suprir a vossa indigência. Assim reinará a
igualdade. Como está escrito: ‘O que colheu muito não teve sobra, e o que pouco
colheu não teve falta’ (Êxodo 16, 18)."
O discurso de São Paulo guarda notável sintonia com o ideal comunista proclamado
por Marx, em sua ‘Crítica ao programa de Ghota’, de 1875, onde ele diz:
“De cada
qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”.
Como se vê, a ética cristã, mesmo quando vocalizada por São Paulo e não
pelo Cristo, é absolutamente idêntica à ética socialista. Igualdade, cooperação
e solidariedade são os fundamentos de ambas. Por isso, todo discurso e toda prática
genuinamente cristãos ferem profundamente o capitalismo em sua base cultural de
sustentação – que é a ética da desigualdade, da competição e da indiferença
pelo outro – e, portanto, são discursos e práticas essencialmente
anticapitalistas e pró-socialistas.
Dir-se-á que o pacifismo cristão é um óbice à revolução socialista. Ora,
revoluções não se fazem só com fuzis. Uma revolução socialista é algo muito
mais complexo do que um simples golpe de Estado. Golpes de Estado só vingam
quando o governo ou o próprio Estado estão debilitados. Mais poderosa que as
ações de milícias revolucionárias é a mobilização pacífica das massas,
desarmadas, para a desobediência civil, dentro e fora do Estado burguês. Esse
tipo de mobilização é a forma mais eficiente de desarticular o Estado e
esvaziar sua autoridade perante as massas, abrindo caminho, aí sim, para um
golpe de Estado exitoso e virtuoso, porque democrático, já que realmente respaldado pelo
povo em seus propósitos.
O nome político do amor é Socialismo
Quando a ética cristã e socialista da solidariedade for melhor
compreendida e quando, afinal, for aceita pelas massas, como valor humano
essencial e como padrão de conduta a ser seguido, não haverá mais como o
capitalismo se sustentar. O chumbo dos pés do gigante terá virado barro, bastando
um só golpe de martelo para pô-lo abaixo.
Só o Cristianismo com sua ética solidária, pode fazer com que os homens
não se sintam coagidos a dividir suas posses, mas que, ao contrário disso,
sendo livres, sintam-se movidos, pela própria consciência, a voluntariamente
repartirem o que possuem e o que poderiam vir a possuir um dia.
Só quem ama a seu próximo como a si mesmo é capaz de repartir o que tem,
suas posses e seus sonhos, sem se sentir roubado.
Só um povo constituído por indivíduos generosos, dotados da capacidade
de amar seu semelhante, será capaz de viver feliz no socialismo. Porque só quem
ama é capaz de ser feliz renunciando ao que tem em favor do outro.
O ódio pode derrubar governos e até mover revoluções. Mas não é
capaz de construir o Socialismo Democrático. Quem constrói o Socialismo Democrático
é a solidariedade. E a solidariedade nada mais é que o amor em
ação. Por isso, concordo com Frei Betto quando ele diz, numa frase
lapidar, que “o nome político do amor não é outro senão Socialismo”.
O socialismo é, sem dúvida nenhuma, o sistema econômico-social mais
coerente com a ética cristã. Eu diria até, sem medo de errar, que o Socialismo Democrático,
que estabelece a igualdade preservando a liberdade, será mesmo uma consequência
natural da compreensão e da vivência da genuína ética cristã pela maioria dos
indivíduos. Para mim, o Reino dos Céus na Terra, anunciado por Jesus, será de
fato uma sociedade socialista e democrática.