Esquerda deve abandonar ilusões e preparar-se para o pior. Só com multidões nas ruas dispostas à guerra é que se pode evitar golpe e ditadura.
14/08/2021 - O país tem vivido sob permanentes ameaças de golpe de Estado, com reiteradas manifestações explícitas e implícitas não só do presidente da república, mas também dos comandantes militares, a última delas, um desfile de tanques na frente do Congresso e do Supremo. Explicita e reiteradamente, o presidente tem afirmado que pode não aceitar o resultado da eleição e até que pode impedir a realização da eleição, o que levou o presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, a emitir uma nota, em 9 de julho, com a seguinte advertência: "A realização de eleições, na data prevista na Constituição, é pressuposto do regime democrático. Qualquer atuação no sentido de impedir a sua ocorrência viola princípios constitucionais e configura crime de responsabilidade".
Essa advertência do TSE foi apenas a primeira de muitas, mostrando que a cúpula do judiciário não duvida da disposição do presidente e dos militares de cumprirem suas ameaças e que esses altos magistrados reconhecem um risco real de as eleições não ocorrerem. Aliás, a divulgação ampla dessa e de outras notas assim como as muitas declarações dos ministros do Supremo à imprensa e em eventos públicos, sugere que essas manifestações sejam menos advertências ao governo e aos militares do que alertas à sociedade, para que reaja. Se fossem apenas advertências, poderiam ser transmitidas aos destinatários de forma reservada.
As eleições do ano que vem estão mesmo ameaçadas, só não vê quem não quer. É crescente o risco de não ocorrerem ou de que tenham seus resultados contestados. Bolsonaro vai mal nas pesquisas, porque elas mostram a opinião da maioria da população, que é pobre. Mas ele tem forte apoio da minoria rica, tem forte apoio no parlamento, nas forças armadas, nas polícias, além de contar com centenas de milhares de seguidores civis armados espalhados pelo país, organizados em quadrilhas chamadas milícias, em empresas de segurança privada e em clubes de tiro.
Desde que chegou ao governo, Bolsonaro vem investindo na consolidação de um poder de fato, baseado em instituições e organizações armadas da sociedade, para impor-se ao poder de direito das instituições e organizações civis desarmadas, como o próprio parlamento, o judiciário, os partidos e as entidades dos movimentos sociais. Não é exagero afirmar que estamos na iminência de um golpe de Estado. Este golpe tem sido preparado à luz do dia e aos olhos de todos, os sinais são mais que evidentes. Mas há sinais também evidentes de insegurança para dar este passo.
Se Bolsonaro e os militares julgassem viável um golpe de Estado e uma ditadura estável e duradoura, sem risco considerável de terminarem na cadeia como os golpistas da Bolívia, não precisariam estar comprando a lealdade do mal afamado Centrão. Se recorrem ao Centrão é porque reconhecem que teriam pouquíssimas chances de êxito, dada a enorme oposição que sofreriam da maior parte da sociedade. Há até bem pouco tempo não seria tanta oposição assim, já que a maior parte da sociedade tinha dos militares elevado conceito e sempre as melhores expectativas.
Mas a percepção do povo sobre os militares mudou muito desde que eles se associaram a Bolsonaro para disputar o governo como um partido político, como um partido passaram a integrar o governo que ajudaram a eleger e no governo, afinal, decepcionaram. Seus desempenhos desastrosos frustraram dramaticamente quem esperava excelência e virtude e desfizeram por completo os mitos da competência e incorruptibilidade que por tanto tempo lhes valeram o respeito e a confiança de muita gente, legitimando de uma certa forma o papel de tutores da sociedade que eles se atribuem, amparados numa interpretação absurda do artigo 142 da constituição. As impactantes revelações da CPI da Pandemia destruíram a falsa imagem que projetavam para a sociedade e com isso eles perderam a confiança e o respeito do povo. Quem não confia e respeita não reconhece autoridade e quem não reconhece autoridade, desacata.
Todo regime político, mesmo o mais autoritário, precisa de uma base social bastante ampla que o sustente, consentindo que governe, ou seja, obedecendo aos seus comandos e ajustando-se à ordem que ele estabelece, de modo que só contra uma minoria rebelde seja preciso exercer coerção. Ao que tudo indica, os militares brasileiros hoje não têm consentimento nenhum da maior parte da sociedade para assumirem o governo do país e exercê-lo de forma arbitrária, num regime ditatorial, como gostariam. E não têm esse consentimento exatamente porque acabou a confiança e o respeito que havia por eles. Desmascarados, eles tentam intimidar quem os critica, mas são prontamente afrontados, contestados por todo lado, de um jeito que há até bem pouco tempo não eram.
Há uma crescente animosidade e exasperação da sociedade contra os militares e essa rejeição teve sua expressão mais contundente na frase do famoso empresário e youtuber Felipe Neto, dirigida recentemente através do Twitter ao comandante da Aeronáutica. Numa entrevista da véspera, o tenente-brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior reiterara uma ameaça que fez, em nota conjunta com o ministro da defesa e os comandantes da marinha e exército, aos membros da CPI da Pandemia. Disse então Felipe Neto: “Prezado brigadeiro. Vai ameaçar a puta que pariu, babaca. Pare de envergonhar as forças armadas, tome vergonha nessa tua cara e lembre-se que você trabalha pra gente, não o contrário”.
Esse inesperado insulto teve enorme repercussão e aprovação nas redes sociais da internet. Para muitos deve ter tido o efeito libertador de uma heresia. Foi como um desafio ao poder de deuses, um poder cuja aparente dignidade tornava até então quase sagrado. Ninguém nunca ousara insultar um comandante militar em público de forma tão direta e grosseira, com tamanho desassombro e tanta raiva, como a dizer “basta” a quem até então nunca se pode contrariar sem ser repreendido ou castigado.
Significativo é o fato de o autor do insulto não ter sido alvo de nenhuma retaliação das forças armadas, não houve sequer protesto ou ação judicial por injúria, ninguém do alto comando, nem mesmo o tal brigadeiro, mostrou-se ofendido. Ouviram e ficaram calados, certamente por entenderem o contexto político em que a declaração se deu. Felipe Neto não fez nada além de traduzir o sentimento de milhões de brasileiros revoltados com a gestão militar da saúde, no governo, durante a pandemia. Não foi só incompetência, foi também corrupção que provocou mais de 500 mil mortes, todo mundo agora já sabe.
A partir da CPI as pesquisas de opinião passaram a indicar que o povo não quer mais militares no governo exercendo funções de comando. Isso significa que o povo não quer mais que militares governem. Por isso é possível avaliar que uma ditadura militar seria insustentável. Sobretudo se essa ditadura destinar-se a dar continuidade à implementação do programa neoliberal adotado à revelia do povo pelo atual governo. Sim, porque a rejeição popular a Bolsonaro e aos militares é uma rejeição exatamente à gestão neoliberal desse governo em todas as áreas da administração pública e não apenas na saúde.
Não se sabe o que pensam realmente os militares, mas pode-se presumir com alguma chance de acerto. Há tempos ouvem-se dissonâncias. Bolsonaro e Braga Netto ameaçam de golpe, Mourão e Santos Cruz reagem, condenando. São indícios de divisão entre as lideranças militares quanto à orientação a seguir. A evidente inviabilidade de uma ditadura estável e duradoura torna o golpe um projeto de altíssimo risco para os seus agentes. E esse risco alto de derrota é que possivelmente provoca a rejeição de uma parte das lideranças militares à ideia da ruptura. É possível que temam até mesmo que a violência de uma eventual reação popular permita o avanço de um projeto esquerdista mais radical, que promova inclusive uma reforma das próprias forças armadas.
Parece claro que o “tudo ou nada” só está interessando mesmo aos militares que sentem-se ameaçados pelas investigações da CPI e também do STF. Para estes, escapar ao acerto de contas com a justiça tornou-se objetivo único, nada mais lhes importa. Por isso, quanto mais o cerco se fecha mais agressivamente reagem, disparando ameaças, que ao invés de intimidar mais exacerbam a oposição que sofrem na sociedade, no parlamento e na suprema corte. Bolsonaro e seus comandantes militares estão realmente acuados e usam desesperadamente as atribuições e prerrogativas dos cargos que ocupam como proteções contra o assedio que sofrem. O governo tornou-se o único refúgio possível, razão pela qual é presumível que estejam dispostos a mantê-lo a qualquer custo, mesmo correndo o risco de serem derrotados e presos.
Estão claramente testando os limites que a sociedade está disposta a lhes impor, tentando aferir quanto apoio e quanta oposição teriam para um golpe. Podem decidir arriscar tudo, por entenderem que nada têm a perder ou podem estar blefando para forçar um acordo que lhes propicie uma saída menos humilhante do governo e um julgamento menos rigoroso da justiça, contando com a complacência e apoio da burguesia, de quem sempre foram leais servidores. O que farão?
Se não há como saber, deve a esquerda preparar-se para o pior. Não convém desprezar as poucas chances de êxito de uma eventual intentona golpista, porque é sempre possível a uma minoria organizada e armada impor-se a uma maioria desorganizada e desarmada, sobretudo se essa maioria está desmobilizada. Por isso é preciso investir tudo na mobilização do povo para o combate nas ruas agora, já, imediatamente.
Por que apostar na hipótese de blefe quando bem pode não ser? E em que se baseia, afinal, a evidente confiança da maioria das lideranças da esquerda na disposição e capacidade dos parlamentares e juízes da direita não bolsonarista para impedirem o golpe militar e garantirem a realização das eleições do ano que vem? É tão grande essa confiança que mais se conclama à reação esses parlamentares e juízes do que às massas trabalhadoras. E no entanto é à reação das massas que os militares mais temem, exatamente por saberem que as multidões mobilizadas são a única força social capaz de derrotá-los. Sem o respaldo de multidões dispostas ao confronto numa guerra civil, o poder dos tribunais e parlamentos é apenas formal, não é um poder de fato é poder apenas de direito, que os golpistas armados desprezam.
Bolsonaro e os militares sabem que estão isolados, por isso pedem socorro ao Centrão. Ao fazê-lo revelam que nesse momento preferem evitar o golpe, pela falta de unidade das próprias lideranças militares, provocada exatamente pela expectativa da reação que preveem da sociedade. Podem até tentá-lo como medida extrema de desespero. Mas com certeza a derrota é o resultado mais provável que podem colher. Se sentirem, no entanto, que a reação da sociedade pode ser menor do que a esperada, a unidade das lideranças militares para o golpe pode acontecer, encorajada pelo aumento das chances de vitória. Por isso é fundamental que as lideranças da esquerda acreditem mais no efeito dissuasório da mobilização das massas e abandonem definitivamente as ilusões que ainda alimentam nas disposições e capacidades de uma suposta direita democrática.
A direita não bolsonarista não tem força para impedir um golpe militar sozinha porque, sendo odiada e rejeitada pelo povo, não é capaz de mobilizá-lo. E a direita não bolsonarista também não é democrata, foi ela quem deu o golpe de 2016, foi ela quem prendeu Lula, ajudou a eleger Bolsonaro e participa até hoje do seu governo infame e desastroso, junto com os militares. Essa direita não bolsonarista precisa do povo para livrar-se do problema enorme que criou para o país e para si mesma, pois não consegue controlar as forças fascistas que mobilizou contra Lula, o PT e o conjunto da esquerda. E por ironia da história, agora só Lula, o PT e a esquerda é que são capazes de botar povo na rua para enfrentar o monstro que a direita não bolsonarista criou.
Por enquanto, a presunção da inviabilidade desse golpe militar anunciado tem encorajado realmente uma forte reação dos juízes e parlamentares da direita não bolsonarista, que posam de democratas, respondendo com crescente veemência e frequência às ameaças de ruptura, enquanto intensificam investigações sobre os crimes do presidente e dos militares que assumiram funções de comando na administração pública. Essa ofensiva tem o discreto apoio de lideranças militares não bolsonaristas e das que tendo sido aliadas do presidente começam a abandonar o barco, antevendo o inevitável naufrágio. Mas não é essa reação institucional que vai evitar o golpe ou derrotá-lo, se ele for tentado. O que pode evitar ou derrotar esse possível golpe é a mobilização social. Por isso é na mobilização social que a esquerda deve mais investir e não nas ações institucionais, como até agora tem feito. Esperar que tudo se resolva no judiciário ou no parlamento é deixar caminho aberto para o avanço do projeto autoritário.