quarta-feira, 8 de setembro de 2021

A esquerda e o poder ilusório do direito

Quem realmente ameaça as liberdades democráticas no Brasil não é Bolsonaro e sim as forças armadas e as polícias, sem cujo apoio ele seria inofensivo e muito provavelmente já teria sido apeado do governo. Bolsonaro e a extrema direita civil só parecem tão perigosos, afrontando a sociedade e as próprias instituições do Estado com uma retórica tão agressiva e ameaçadora, porque têm atrás de si os militares e as polícias. Pois são estes que formam efetivamente o braço armado da extrema direita brasileira. 

E não é de hoje que cumprem esse papel, já o fazem desde a monarquia, esse desvio de função não é invenção de Bolsonaro nem os militares e policiais são inocentes úteis aos propósitos nefastos do presidente. Essa gente faz parte da extrema direita e apenas usa Bolsonaro para vocalizar o que pensa e quer. Se eles retiram o apoio que dão, Bolsonaro cai, porque a extrema direita civil não tem força suficiente para sustentá-lo e não atemoriza nem o Congresso e nem o Supremo. Tanto que vários bolsonaristas civis já foram presos, mas militar de alta patente, nenhum, os desmandos se sucedem e ninguém tem coragem de encarcerá-los porque ninguém tem força para contê-los. 

Quem tem a caneta tem o poder de direito, mas poder de fato têm mesmo os que andam armados. Por isso é a estes que a esquerda e a classe trabalhadora precisam se impor para garantir suas liberdades políticas e conquistar o comando do Estado, que é a condição para haver democracia. Mas como impor-se a uma força armada hostil por meios pacíficos, como pretende a maior parte da esquerda? Creio, sinceramente, não ser possível, estamos a cultivar ilusões.

terça-feira, 7 de setembro de 2021

O pacifismo é aliado da opressão e inimigo da justiça

Civis desorganizados e desarmados serão sempre vítimas de abusos militares

Em novembro de 1988, o Exército Brasileiro se prepara para a invasão da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda/RJ, ocupada por metalúrgicos em greve. Na invasão, o Exército Brasileiro matou três operários brasileiros desarmados.
7/9/2021 - O Visconde de Ouro Preto já sabia, em 1889, algo que a esquerda brasileira até hoje não entendeu: que uma força armada só pode ser contida por outra força armada. Em seu manifesto aos brasileiros, publicado em Portugal logo após o golpe de Estado que depôs o imperador Pedro II e proclamou a república, ele disse: “A força armada não deve governar pela óbvia razão de que para lhe resistir aos desmandos fora mister que as outras classes se armassem também”. Mas concluiu a frase advertindo, presumivelmente horrorizado, só de imaginar, que esta seria uma “situação intolerável e absurda”. Por que intolerável e absurda se ele mesmo acabava de reconhecer que esta era a única forma eficaz de resistência? A resposta é simples. Porque isso daria poder ao povo e quando o povo tem poder governa. O regime em que o povo governa chama-se democracia e o visconde de Ouro Preto não era evidentemente um democrata, era um alto representante dos ricos monarquistas, que assim como os ricos republicanos de então e os ricos de todas as sociedades e todas as épocas, abominavam a ideia de uma sociedade governada por representantes da classe trabalhadora. Tanto que proclamaram a república de forma arbitrária, sem consultar o povo e nem sequer convidá-lo a tomar parte do ato. 

O jornalista republicano Aristides Lobo despediu-se dos seus leitores, para assumir um cargo no governo provisório instalado, com uma carta em que descreve o que testemunhara. Disse ele: “Por ora, a cor do governo é puramente militar, e devera ser assim. O fato foi deles, deles só, porque a colaboração do elemento civil foi quase nula. O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso sem conhecer o que significava. Muitos acreditavam sinceramente estar vendo uma parada”. A república no Brasil foi fundada por um golpe militar e os militares impuseram-se à sociedade brasileira como seus eternos tutores. Suas presenças nas disputas políticas foram desde então permanentes, de forma às vezes mais, às vezes menos ostensiva. A história da república tem sido uma sucessão de golpes e ditaduras militares, intercaladas por breves períodos de regimes constitucionais, nunca inteiramente livres de ameaças de mais golpes e ditaduras. Estamos vendo neste 7 de setembro a história se repetir, não menos perplexos e impotentes do que os brasileiros das gerações passadas. 

Tornou-se afinal insustentável esse relacionamento verdadeiramente abusivo que tem sido mantido por de mais um século entre a sociedade civil e a sociedade militar no Brasil. É preciso reconhecer antes de tudo que abuso de poder só existe em relações sociais onde há desequilíbrio acentuado de poder e que uma sociedade civil desorganizada e desarmada estará sempre inevitavelmente sujeita a abusos da sociedade militar, por natureza armada e organizada. Ocorre que numa sociedade capitalista, as forças armadas do Estado não servem aos interesses da nação e sim aos da classe rica que comanda o Estado, chamada burguesia. É a esta minoria rica que os militares sempre serviram e sempre servirão no capitalismo. As forças armadas do Brasil são na verdade forças mercenárias a serviço de quem pode lhes pagar o maior soldo. O patriotismo apregoado por seus comandantes não passa de uma fachada ideológica destinada a ocultar interesses vis e compromissos espúrios, que a prática deles acaba por revelar. Não é contra a minoria rica da sociedade civil que a sociedade militar comete abusos, é sempre contra a maioria pobre, que padece indefesa exatamente por não ter organização e armas. 

A esquerda brasileira precisa entender que abuso de poder haverá enquanto houver tão acentuado desequilíbrio de forças entre uma sociedade militar organizada, disciplinada e armada e uma sociedade civil desorganizada, indisciplinada e desarmada. Armas, organização e disciplina são as bases fundamentais do poder real ou poder de fato dos aparatos de defesa e segurança do Estado, mas também do narcotráfico e das quadrilhas de extorsionários que tem sido chamadas de milícias. Este poder de fato que afronta quando quer o poder de direito das próprias instituições do Estado comandado pelos ricos e que é exercido permanentemente de forma severa e cruel sobre as populações mais pobres, só pode ser contido por meios iguais aos que emprega, não há outra forma de defesa contra eles e não há outra forma de desencorajar os seus ímpetos covardes e autoritários. Não se logrará conquistar o seu respeito a limites legais e morais sem mostrar capacidade de usar com maestria as mesmas técnicas e instrumentos de guerra que eles dominam. 

Uma ação de guerra só pode ser neutralizada por outra ação de guerra. Quando e enquanto esta reação não ocorre estabelece-se uma relação de opressão, em que o agredido é subjugado pelo agressor. Como não há combate, confrontação de forças e hostilidades mútuas, configura-se uma situação de paz. Mas será uma paz assim desejável para quem é vítima da opressão e para quem tem apreço pela justiça? Será a justiça um valor menor do que a paz, a ponto de se prescindir dela para evitar um conflito? Seria correto sacrificar a justiça, consentir e compactuar com a injustiça, a pretexto de manter a paz? Evidentemente que não, por isso há tantos conflitos sociais. O oprimido revolta-se porque sofre e o justo revolta-se porque do oprimido se compadece. 

A guerra é como uma febre intensa que acomete as sociedades, sendo como toda febre efeito da reação orgânica à doença e sendo este efeito percebido como sintoma do mal que o provoca. E a despeito do que desejam todos quantos têm apreço pela paz, ainda há muita opressão e injustiça no mundo a que só as guerras podem dar fim, ainda que ao preço de muita dor, mal estar e prejuízos. A justiça é o bem maior para o justo. Pela justiça o justo encara todos os riscos e submete-se a todo sacrifício, até mesmo o sacrifício da própria vida. A justiça, para o injustiçado e para o justo, vale mais do que a paz. Sem justiça, a paz nada mais é do que opressão sem resistência. Quando há resistência há guerra, que os pacifistas querem evitar a todo custo, admitindo até mesmo o sacrifício da justiça. 

O pacifismo é objetivamente aliado da opressão e inimigo da justiça. Porque nem toda paz é justa e libertadora assim como nem toda guerra é injusta e opressora. A paz pode ser e é frequentemente injusta e opressora enquanto a guerra é que muitas vezes se mostra justa e libertadora. Porque em toda relação humana de opressão há um oprimido que tem o direito de reagir e lutar por liberdade e porque em toda relação humana injusta há um injustiçado que tem o direito de reagir e lutar por justiça e um justo que acredita ser seu dever lhe ser solidário.

O pacifismo predominante na esquerda brasileira está na raiz das ilusões que ela mantém quanto às disposições democráticas e pacíficas da direita e dos ricos e quanto ao caráter democrático e pacífico das instituições do Estado que a direita e os ricos comandam. Os ricos e a direita não são pacifistas nem democratas, são autoritários e belicosos. Por isso quando a esquerda alimenta a mente dos pobres com as suas tolas e perigosas ilusões na falsa democracia comandada pelos ricos e pela direita ela está contribuindo para manter os pobres mentalmente indefesos contra as mistificações e trapaças da direita e dos ricos. E quando a esquerda alimenta o pacifismo dos pobres ela está contribuindo para mantê-los fisicamente indefesos frente ao poder organizado e armado dos ricos, sendo os pobres pelos ricos facilmente subjugados em razão desse despreparo que os torna impotentes, a despeito de serem bem mais numerosos.

Nas horas que antecederam aos atos golpistas convocados por Bolsonaro, o medo da militância de esquerda era indisfarçável e justificado. Não temos mesmo a massa trabalhadora conosco, porque não a mobilizamos, ocupados que estávamos analisando pesquisas e articulando alianças para uma eleição que nem sabemos se haverá. E não nos preparamos, nem mentalmente nem materialmente, para o tipo de combate que a luta contra o fascismo requer, porque aprendemos com nossas lideranças que a única forma de disputa política legítima é a que vale-se de meios pacíficos. Aprendemos que toda violência é condenável, mesmo quando usada para a autodefesa; rejeitamos, consequentemente, a violência e recusamos qualquer proposta de preparação para o seu emprego com fins defensivos. De repente surge uma ameaça de agressão e não sabemos o que fazer. 

Por isso é que vamos hoje para as ruas torcendo para que os generais, juízes e governadores da direita não bolsonarista ainda tenham alguma autoridade sobre o exército e as polícias, para nos protegerem de agressões e derrotarem o golpe de Estado anunciado. Não temos força própria para resistir e a consciência dessa impotência é que nos faz sentir inseguros. Nossa liberdade e integridade física estão a depender não de aliados mas de inimigos. E chegamos a tal situação pelas decisões equivocadas que tomamos, determinadas pelas ilusões que alimentamos em razão da nossa opção pacifista. 

Já é hora da esquerda brasileira refletir sobre esse pacifismo que tanto a fragiliza perante a direita. Porque sem disposição e preparação para a guerra, a derrota, a opressão e o martírio serão sempre inevitáveis. Não basta estar do lado certo da história, é preciso vencer guerras e só vence guerra quem usa os meios mais eficazes para alcançar os seus fins, sem restrições de natureza moral. A menos que o objetivo maior não seja a transformação da sociedade e sim o conforto de uma consciência adormecida e indiferente pelos males decorrentes da sua omissão. O que mais quer a militância de esquerda, qual é o seu maior objetivo? É a justiça mesmo ou é só um lugar no Céu?

7/9/2021