Civis desorganizados e desarmados serão sempre vítimas de abusos militares |
Em novembro de 1988, o Exército Brasileiro se prepara para a invasão da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda/RJ, ocupada por metalúrgicos em greve. Na invasão, o Exército Brasileiro matou três operários brasileiros desarmados. |
7/9/2021 - O Visconde de Ouro Preto já sabia, em 1889, algo que a esquerda brasileira até hoje não entendeu: que uma força armada só pode ser contida por outra força armada. Em seu manifesto aos brasileiros, publicado em Portugal logo após o golpe de Estado que depôs o imperador Pedro II e proclamou a república, ele disse: “A força armada não deve governar pela óbvia razão de que para lhe resistir aos desmandos fora mister que as outras classes se armassem também”. Mas concluiu a frase advertindo, presumivelmente horrorizado, só de imaginar, que esta seria uma “situação intolerável e absurda”. Por que intolerável e absurda se ele mesmo acabava de reconhecer que esta era a única forma eficaz de resistência? A resposta é simples. Porque isso daria poder ao povo e quando o povo tem poder governa. O regime em que o povo governa chama-se democracia e o visconde de Ouro Preto não era evidentemente um democrata, era um alto representante dos ricos monarquistas, que assim como os ricos republicanos de então e os ricos de todas as sociedades e todas as épocas, abominavam a ideia de uma sociedade governada por representantes da classe trabalhadora. Tanto que proclamaram a república de forma arbitrária, sem consultar o povo e nem sequer convidá-lo a tomar parte do ato.
O jornalista republicano Aristides Lobo despediu-se dos seus leitores, para assumir um cargo no governo provisório instalado, com uma carta em que descreve o que testemunhara. Disse ele: “Por ora, a cor do governo é puramente militar, e devera ser assim. O fato foi deles, deles só, porque a colaboração do elemento civil foi quase nula. O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso sem conhecer o que significava. Muitos acreditavam sinceramente estar vendo uma parada”. A república no Brasil foi fundada por um golpe militar e os militares impuseram-se à sociedade brasileira como seus eternos tutores. Suas presenças nas disputas políticas foram desde então permanentes, de forma às vezes mais, às vezes menos ostensiva. A história da república tem sido uma sucessão de golpes e ditaduras militares, intercaladas por breves períodos de regimes constitucionais, nunca inteiramente livres de ameaças de mais golpes e ditaduras. Estamos vendo neste 7 de setembro a história se repetir, não menos perplexos e impotentes do que os brasileiros das gerações passadas.
Tornou-se afinal insustentável esse relacionamento verdadeiramente abusivo que tem sido mantido por de mais um século entre a sociedade civil e a sociedade militar no Brasil. É preciso reconhecer antes de tudo que abuso de poder só existe em relações sociais onde há desequilíbrio acentuado de poder e que uma sociedade civil desorganizada e desarmada estará sempre inevitavelmente sujeita a abusos da sociedade militar, por natureza armada e organizada. Ocorre que numa sociedade capitalista, as forças armadas do Estado não servem aos interesses da nação e sim aos da classe rica que comanda o Estado, chamada burguesia. É a esta minoria rica que os militares sempre serviram e sempre servirão no capitalismo. As forças armadas do Brasil são na verdade forças mercenárias a serviço de quem pode lhes pagar o maior soldo. O patriotismo apregoado por seus comandantes não passa de uma fachada ideológica destinada a ocultar interesses vis e compromissos espúrios, que a prática deles acaba por revelar. Não é contra a minoria rica da sociedade civil que a sociedade militar comete abusos, é sempre contra a maioria pobre, que padece indefesa exatamente por não ter organização e armas.
A esquerda brasileira precisa entender que abuso de poder haverá enquanto houver tão acentuado desequilíbrio de forças entre uma sociedade militar organizada, disciplinada e armada e uma sociedade civil desorganizada, indisciplinada e desarmada. Armas, organização e disciplina são as bases fundamentais do poder real ou poder de fato dos aparatos de defesa e segurança do Estado, mas também do narcotráfico e das quadrilhas de extorsionários que tem sido chamadas de milícias. Este poder de fato que afronta quando quer o poder de direito das próprias instituições do Estado comandado pelos ricos e que é exercido permanentemente de forma severa e cruel sobre as populações mais pobres, só pode ser contido por meios iguais aos que emprega, não há outra forma de defesa contra eles e não há outra forma de desencorajar os seus ímpetos covardes e autoritários. Não se logrará conquistar o seu respeito a limites legais e morais sem mostrar capacidade de usar com maestria as mesmas técnicas e instrumentos de guerra que eles dominam.
Uma ação de guerra só pode ser neutralizada por outra ação de guerra. Quando e enquanto esta reação não ocorre estabelece-se uma relação de opressão, em que o agredido é subjugado pelo agressor. Como não há combate, confrontação de forças e hostilidades mútuas, configura-se uma situação de paz. Mas será uma paz assim desejável para quem é vítima da opressão e para quem tem apreço pela justiça? Será a justiça um valor menor do que a paz, a ponto de se prescindir dela para evitar um conflito? Seria correto sacrificar a justiça, consentir e compactuar com a injustiça, a pretexto de manter a paz? Evidentemente que não, por isso há tantos conflitos sociais. O oprimido revolta-se porque sofre e o justo revolta-se porque do oprimido se compadece.
A guerra é como uma febre intensa que acomete as sociedades, sendo como toda febre efeito da reação orgânica à doença e sendo este efeito percebido como sintoma do mal que o provoca. E a despeito do que desejam todos quantos têm apreço pela paz, ainda há muita opressão e injustiça no mundo a que só as guerras podem dar fim, ainda que ao preço de muita dor, mal estar e prejuízos. A justiça é o bem maior para o justo. Pela justiça o justo encara todos os riscos e submete-se a todo sacrifício, até mesmo o sacrifício da própria vida. A justiça, para o injustiçado e para o justo, vale mais do que a paz. Sem justiça, a paz nada mais é do que opressão sem resistência. Quando há resistência há guerra, que os pacifistas querem evitar a todo custo, admitindo até mesmo o sacrifício da justiça.
O pacifismo é objetivamente aliado da opressão e inimigo da justiça. Porque nem toda paz é justa e libertadora assim como nem toda guerra é injusta e opressora. A paz pode ser e é frequentemente injusta e opressora enquanto a guerra é que muitas vezes se mostra justa e libertadora. Porque em toda relação humana de opressão há um oprimido que tem o direito de reagir e lutar por liberdade e porque em toda relação humana injusta há um injustiçado que tem o direito de reagir e lutar por justiça e um justo que acredita ser seu dever lhe ser solidário.
O pacifismo predominante na esquerda brasileira está na raiz das ilusões que ela mantém quanto às disposições democráticas e pacíficas da direita e dos ricos e quanto ao caráter democrático e pacífico das instituições do Estado que a direita e os ricos comandam. Os ricos e a direita não são pacifistas nem democratas, são autoritários e belicosos. Por isso quando a esquerda alimenta a mente dos pobres com as suas tolas e perigosas ilusões na falsa democracia comandada pelos ricos e pela direita ela está contribuindo para manter os pobres mentalmente indefesos contra as mistificações e trapaças da direita e dos ricos. E quando a esquerda alimenta o pacifismo dos pobres ela está contribuindo para mantê-los fisicamente indefesos frente ao poder organizado e armado dos ricos, sendo os pobres pelos ricos facilmente subjugados em razão desse despreparo que os torna impotentes, a despeito de serem bem mais numerosos.
Nas horas que antecederam aos atos golpistas convocados por Bolsonaro, o medo da militância de esquerda era indisfarçável e justificado. Não temos mesmo a massa trabalhadora conosco, porque não a mobilizamos, ocupados que estávamos analisando pesquisas e articulando alianças para uma eleição que nem sabemos se haverá. E não nos preparamos, nem mentalmente nem materialmente, para o tipo de combate que a luta contra o fascismo requer, porque aprendemos com nossas lideranças que a única forma de disputa política legítima é a que vale-se de meios pacíficos. Aprendemos que toda violência é condenável, mesmo quando usada para a autodefesa; rejeitamos, consequentemente, a violência e recusamos qualquer proposta de preparação para o seu emprego com fins defensivos. De repente surge uma ameaça de agressão e não sabemos o que fazer.
Por isso é que vamos hoje para as ruas torcendo para que os generais, juízes e governadores da direita não bolsonarista ainda tenham alguma autoridade sobre o exército e as polícias, para nos protegerem de agressões e derrotarem o golpe de Estado anunciado. Não temos força própria para resistir e a consciência dessa impotência é que nos faz sentir inseguros. Nossa liberdade e integridade física estão a depender não de aliados mas de inimigos. E chegamos a tal situação pelas decisões equivocadas que tomamos, determinadas pelas ilusões que alimentamos em razão da nossa opção pacifista.
Já é hora da esquerda brasileira refletir sobre esse pacifismo que tanto a fragiliza perante a direita. Porque sem disposição e preparação para a guerra, a derrota, a opressão e o martírio serão sempre inevitáveis. Não basta estar do lado certo da história, é preciso vencer guerras e só vence guerra quem usa os meios mais eficazes para alcançar os seus fins, sem restrições de natureza moral. A menos que o objetivo maior não seja a transformação da sociedade e sim o conforto de uma consciência adormecida e indiferente pelos males decorrentes da sua omissão. O que mais quer a militância de esquerda, qual é o seu maior objetivo? É a justiça mesmo ou é só um lugar no Céu?
7/9/2021